sábado, 5 de dezembro de 2009

Metáforas do Reino de LIRABS



Ormezinda Maria Ribeiro- Aya é Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela Unesp.
Professora Adjunta da Universidade de Brasília-UnB
ayaribeiro@yahoo.com.br

Era desprovida de tamanho, mas gostava de estudar. Tinha título de doutora e aparência de menina curiosa, sempre disposta a aprender.Há anos alimentava um sonho: o de ter na cidade que escolheu para viver uma universidade pública na qual pudesse orientar as pesquisas de alunos ávidos pelas letras e pela educação, sem que precisassem viajar tanto como ela fez para continuar estudando. Esperou vinte anos por isso. Não só esperou, mas se empenhou em tornar esse sonho realidade, como uma mãe que gesta o filho da maturidade. Finalmente o sonho estava preste a se concretizar: o Presidente assinou. A Universidade Pública era já um fato. Faltava o curso dos seus sonhos, que ela fez materializar diante da tela de seu computador e nas inúmeras páginas impressas, adicionando ali as expectativas de mudança dos rumos da educação e das concepções curriculares. Chegou o concurso. Ela afastou-se da comissão organizadora. Não queria privilégios. Apenas o justo direito de concorrer, de forma ética e transparente, com tantas outras pessoas também merecedoras desse respeito. Teria que elaborar um texto e ministrar uma aula sobre um tema sorteado, escolhido dentro do projeto que ela redigira letra por letra, dando corpo a sua maneira de pensar a educação de forma integrada. Seu currículo também seria analisado por uma banca composta por membros os quais ela não conhecia. Engoliu em seco quando, já no início da aula, uma das integrantes da banca, pós-doutora, descida do Olimpo, estirou-se na cadeira, feito uma colegial, dirigiu à candidata um olhar de soslaio, sacou de sua bolsa uma lixa de unhas, e começou seu displicente trabalho. Deve ser uma estratégia de avaliação, pensou. Certamente ela esperava ver qual seria a sua reação, como se comportaria diante de uma classe de “verdade”. Passado esse impacto inicial, que não tirou sua concentração, buscou interagir com “a turma”. Afinal, o tema da aula era: “A diversidade de saberes e as interações comunicativas”. Enquanto manuseava o mouse e explorava as imagens e textos que projetava na parede, procurava um contato visual com aqueles “alunos” a sua frente. Foi acostumada a olhar sempre nos olhos de seus interlocutores. Um deles abaixava os olhos sempre que o olhar da candidata buscava o dele. E, desde o início, incessantemente, olhava o relógio, como aqueles alunos que não agüentam mais a aula e não vêem a hora de o sinal tocar para se encontrar com os demais coleguinhas no recreio. Deve ser para controlar os 50 minutos, ponderou naquele momento. Só uma das “alunas da frente” a olhava nos olhos. Diferentemente da “escola real”, as outras alunas, da “turma do fundão”, é que pareciam estar encantadas com o desempenho da pleiteante à professora. Sorviam cada palavra, admiravam cada projeção. Sorriam com os olhos e estimulavam-na a continuar falando do seu projeto de educação. Naquele canto da sala, de fato, era possível perceber o respeito pelas diversidades de saberes e as interações saindo do projeto, ganhando vida. Do outro lado não. Saiu da sala com um misto de contentamento e de desencanto. Seria assim mesmo uma aula para selecionar professores para uma universidade pública que pretende formar professores? Aquela banca, ali, representava, infelizmente, a realidade a qual ela não tardaria a enxergar: a incoerência que assombra os mais bem intencionados projetos de mudança na educação. Os soberanos que são chamados a julgar e a decidir o futuro de pessoas e instituições não conhecem a instituição, nunca viram o seu projeto, prestam um serviço casual e vão-se embora para a sua origem: alguns voltam para o Olimpo, esconjurando a cidade, a casa e até a água que beberam, outros retornam para confirmar sua soberania. Ela foi aprovada, classificada em segundo lugar, por uma diferença centesimal: 0, 0866666666...Seu currículo de 70 páginas publicadas, devidamente comprovado nas quase duas mil laudas de documentos não foi suficiente para definir a classificação em outra ordem: a primeira classificada apresentou apenas 4 páginas e conseguiu suplantá-la, mesmo sem ser doutora. Aos desavisados pode parecer coisa de gênio! Essa seria uma das situações que levam a crer que a matemática não é uma ciência exata, mas interpretativa. E que, nesse caso, mais é menos. Não foi considerada apta para atuar de imediato no projeto que ela própria idealizou e sobre o qual se debruçou durante dias e madrugadas. Restou-lhe um consolo: acreditar que a limitação não era dela. Também não foi a única: outras colegas, de reconhecidas competências, com currículos bem construídos e índoles impecáveis não foram sequer aprovadas. Dentre essas, uma grande educadora, escritora renomada e palestrante convidada a abrir e a fechar grandes eventos das Letras, neste país e no exterior, também foi julgada inapta a fazer parte desse círculo hermético. Sorte dela que não terá de fazer parte de nenhuma igrejinha, tendo sua criatividade tolhida e nem verá sua inestimável contribuição ignorada pelos adeptos de outras “religiões” mais conservadoras!
O sonho não morreu. Apenas foi transformado no desejo de que os soberanos se coloquem no mesmo plano dos idealistas, para que ainda se possa acreditar na educação e nas instituições públicas. E que as metáforas da educação se distanciem do que já está se tornando lugar comum no reino de Lirabs, com a aquiescência dos “poderosos” das sete colinas, na corte privilegiada dos amigos do Rei Heitor…