domingo, 28 de setembro de 2008

DE FERNANDO SABINO A MACHADO DE ASSIS: UMA RELEITURA DE ''DOM CASMURRO''



Autora: Profa Dra Ormezinda Maria Ribeiro- Aya

RESUMO:

Este artigo versa sobre a possibilidade de apropriação das bases teóricas da Lingüística Textual e da Análise do Discurso, numa perspectiva interdisciplinar, com vistas à análise das articulações e das múltiplas possibilidades de aplicação dessas visões no trabalho docente com alunos do ensino fundamental e médio a fim de promover o prazer da leitura de textos considerados clássicos como ''Dom Casmurro''.

ABSTRACT:


This article turns about the possibility of appropriation of the theoretical bases of the Textual Linguistics and of the Analysis of the Speech, in a perspective interdisciplinar, with views to the analysis of the articulations and of the multiple possibilities of application of those visions in the educational work with students of the fundamental and medium teaching in order to promote the pleasure of the reading of classic considered texts like ''Dom Camurro ''.

(...) Percorre-a indefinidamente, sem transpor jamais as fronteiras nítidas da diferença, nem alcançar o coração da identidade.''
Foucault, 1985, p. 61
Introdução
Um dos maiores desafios para um professor de Literatura, atualmente, é, sem dúvida alguma, motivar a leitura sem o recurso da imposição didática. Como promover a leitura de um clássico ''Dom Casmurro'' sem a célebre ''sugestão'' da nota?
Além de competir com a imediata ação da televisão, da revista em quadrinhos, do brinquedo eletrônico, do desenho animado de seres fantásticos e super-heróis, no vídeo e na tela de cinema, o incentivador da leitura esbarra também no problema da identificação do leitor com a obra. Sabemos por experiência que o melhor livro de leitura é aquele que mais interessa e agrada ao leitor, com o quê uma grande corrente de psicólogos também concorda, considerando que teses anteriores atendem apenas aos fatores históricos, sociais e pedagógicos, esquecendo o valor fundamental do gosto, do interesse, da oposição infantil e juvenil.
A adequação da escolha do texto não pode se fundamentar apenas em questões psicológicas, mas também em questões emocionais, sociais, culturais e filosóficas.
Como, então, apresentar ao jovem leitor um texto de Machado de Assis, se considerarmos que, sob o ponto de vista do interesse pessoal, da identificação com a época, ou até mesmo da dificuldade de compreensão lingüística, dado o distanciamento cultural e social desse possível leitor com a obra, jamais teríamos uma leitura espontânea?
Se acatarmos a conclusão que aponta para a indicação de que somente devemos dar ao nosso jovem leitor o que ele gosta, ou melhor dizendo: àquele jovem do qual pretendemos fazer um leitor, então somos forçados a admitir que, dado o exposto, em raríssimas exceções teríamos um leitor de Machado de Assis. Sabemos por experiência própria, como leitora e como professora, que dentre os livros desse renomado escritor, ''Dom Casmurro'', sem entrar no mérito literário de sua indicação, é um dos mais ''recomendados" a alunos, cujo interesse literário está longe de se aproximar da obra machadiana.
O que fazer então? Deixar nosso jovem sem conhecer o que nós, em outra época lemos, embora também movidos pela imposição didática, e hoje nos orgulhamos de ter lido? Ou fazemos o mesmo que nossos velhos professores, na esperança de que, no futuro, assim como nós, eles compreendam a importância da leitura de um clássico do Realismo brasileiro?
Pensamos que a resposta é não para ambas as opções. Não podemos privar nosso inexperiente leitor daquilo que o tempo e as motivações mais amadurecidas nos fizeram descobrir, ainda que em uma situação diversa da de nossos alunos. Por outro lado, ninguém gosta do que não conhece. Se hoje gostamos e admiramos a obra de Machado de Assis é porque tivemos a oportunidade de conhecê-la, ainda que ao nos ser apresentada, assim como os jovens de hoje, também ficamos relutantes. Fazê-los ler para cumprir uma obrigação escolar ou para corroborar nossa afirmação anterior, também não é o caminho.

Qual seria então esse caminho?

Os estudos sobre a leitura evoluíram consideravelmente nos últimos anos. Temos conhecimento de sérias pesquisas no campo da leitura, quer como concepção metodológica, quer epistemológica, quer como teoria literária. Os estudos lingüísticos nos fornecem contribuições valiosas tanto na área da Análise do Discurso, na Lingüística Textual ou em outras áreas conexas. Não se justifica essa evolução se nos dobramos ante um velho problema: como fazer um leitor. Melhor dizendo: como fazer nosso jovem ser um leitor, tanto das obras atuais, com as quais ele se identifica, quanto das obras clássicas que ele tanto abomina, embora dificilmente passe das primeiras páginas ou se esquive lendo um resumo elaborado por um colega mais ''esforçado'', que também não gostou do que leu?
Por que não aproveitarmos os recursos tão preciosos das pesquisas sobre a linguagem, nossos conhecimentos teóricos sobre os mecanismos e processos de leitura, a experiência tão rica de fóruns, congressos e seminários de leitura e literatura, dos quais saímos mais enriquecidos teoricamente, para fazer o nosso jovem ''leitor'' gostar tanto quanto nós daquilo que queremos que ele leia?
Nossa proposta, para encontrar esse caminho é partir das contribuições dos estudos da Análise do Discurso e da Lingüística Textual, e sugerir a leitura do texto '' Dom Casmurro'', de Machado de Assis, por meio da leitura de ''O Bom ladrão'', livro de Fernando Sabino que intertextualiza a obra machadiana.
Traçando um perfil de nosso leitor potencial
Não há leitura de texto em sala de aula se não se percebe que o texto é um modo singular de articulação da linguagem de outro sujeito, e se o professor não apresenta ele mesmo sua leitura singular, que uma vez realizada neste registro, funcionaria como um ato de interdição, pré-condição para qualquer alteridade, a outras que, para existirem, precisariam a ela se contrapor.
BARZOTTO, (1999, p. 18)
Como já dissemos, ninguém aprecia o que não conhece, portanto, nosso candidato a leitor não teria como gostar de ''Dom Casmurro'', ou mesmo de qualquer outra obra de Machado de Assis se não as conhecesse. Essa situação paradoxal como parece é exatamente o ponto estratégico de nossas observações e o ponto de convergência entre as duas obras citadas em nossa proposta.
O professor, é este elemento fundamental de que nos fala Barzotto, aquele que conhece a singularidade de cada uma das obras, conhece por tradição o texto realista, por vocação a teoria literária e por experiência o (des)interesse do aluno, que ele espera formar leitor, mas que não se sente nem um pouco atraído pela leitura da obra que lhe é sugerida pela escola. É esse professor que fará o papel de mediador da leitura, que promoverá a passagem da leitura de um texto escrito na linguagem atual, de interesse do aluno, ao outro, oportunizando essa relação de complementaridade em que as vozes dos dois discursos se fundem formando uma rede de significações.
Quando falamos em rede de significações, estamos falando em tecido, resultado da individualidade, da alteridade de cada leitor que vai entrelaçando o significado pessoal de suas leituras com os vários significados, que ao longo da história de um texto ele foi acumulando. Eis o que diz Lajolo a respeito de nosso leitor ideal:

Leitor maduro é aquele que, em contato com o texto novo, faz convergir para o significado deste texto o significado de todos os textos que leu. (...) Em resumo, o significado de um novo texto afasta, afeta e redimensiona o significado de todos os outros.

Barzotto (1999, p. 18) corrobora essa afirmação quando diz que o requisito primordial para que o aluno possa se constituir como leitor, no interior da escola, é exatamente este, o de reconhecer as palavras do outro no texto que lê, e na leitura que o professor lhe oferece e poder contrapô-las às suas.
Lajolo associa ao poema de João Cabral de Melo Neto a metáfora da tecelagem, fazendo uma analogia ao processo de leitura. Essa lingüista explicita oportunamente, que podemos comparar o percurso histórico da arte de tecer com o percurso histórico da leitura. A exemplo dos homens que trabalham nas tecelagens, por participarem apenas de uma das etapas do processo de produção, perdem o sentido da totalidade tanto do objeto que produzem, quanto do processo pelo qual esse objeto é produzido, também a leitura, se observada em uma perspectiva histórica, revela ter sofrido um processo semelhante.
Essa autora destaca ainda que, com o advento da imprensa, a modernização ininterrupta da indústria do livro tornou possível a massificação da leitura e, conseqüentemente, o fracionamento do significado do texto. Assim, a atividade de leitura, que no princípio de sua prática era individual e reflexiva, transformou-se no consumo rápido do texto, na leitura dinâmica com vistas a atender à demanda da indústria cultural. E é por essa razão que a tarefa do professor, hoje, é a de ser mais do que um orientador ou incentivador de leitura, sobretudo um elo a mais na cadeia que se interpõe entre o leitor e o significado do texto.
Não podemos nos esquecer de que tentamos trabalhar com algo paradoxal: a nossa intenção de mostrar ao leitor uma obra clássica da Literatura Brasileira, longe do interesse de nosso leitor e a idéia partilhada por muitos educadores de que a prática de leitura na escola só deve ocorrer num espaço de liberdade, respeitando-se o gosto de cada um, deixando de lado a prática tão comum nas escolas de indicar um livro único para toda a classe em nome do bom gosto, do valor estético dentre outros fatores.
O texto literário permite ao leitor transitar livremente entre os universos do mundo escrito e o não-escrito e está carregado de elementos potenciais plurisignificativos que são atualizados no ato de leitura.
O contexto cultural constitui um fundamento básico para a compreensão do texto. Cada indivíduo pertence a um grupo social e os contextos social e cultural encontram-se intimamente correlacionados. As inferências geradas dependem, portanto, do conhecimento de mundo prévio do leitor. Dessa forma, ao se ler o implícito no texto, integram-se os dados à própria experiência de mundo do leitor de acordo com a cultura em que está enraizado. A partir dessa abordagem sócio-cultural, o professor estaria apto a aceitar inferências que não reproduzissem sua própria ideologia, bem como ser um educador no sentido mais amplo da palavra, ao trabalhar as expressões sociais de diversos grupos, levando seus alunos a uma visão mais amadurecida e reflexiva da cultura do outro.
Dell`Isola (1991) aponta a necessidade de se trabalharem os três níveis de leitura assim caracterizados: em primeiro lugar, a leitura objetiva, na qual se aborda o que está explícito no texto, fazendo-se levantamento do léxico contextualizado; em segundo lugar, a leitura inferencial na qual o aluno é levado a detectar as inferências, isso é, o que está implícito no texto. Esse nível de leitura é essencial, pois o aluno faz as suas inferências baseando-se na sua visão de mundo, suas experiências e sua ideologia; enfim no seu contexto sócio-cultural. É o momento da interação leitor-texto: o leitor, durante a leitura, age sobre o texto e contrai significados de acordo com as suas perspectivas e sua visão de mundo. Sendo assim, é lógico que o sentido de um texto não será o mesmo para todos os alunos, uma vez que “leitura” é um processo em que o leitor participa não decodificando sinais, mas sobretudo dando sentido aos sinais, em terceiro lugar, a leitura avaliativa, na qual o aluno extrapola o texto, manifestando sua postura crítica, a partir de suas ideologias, julgamentos pessoais diante das idéia expressas pelo autor, sendo, dessa forma, uma ponte para a produção do texto.
Ao se trabalhar a leitura, nos seus três níveis, pretende-se, entre outros aspectos, os seguintes: a- desenvolver uma leitura, como construção de sentidos; b- trabalhar o implícito no texto, desenvolvendo processo de inferências; c- ampliar a visão de mundo compartilhada ou não, orientando o aluno a compreender a cultura do outro, relativizando seus pontos de vista; d- desenvolver a percepção da intertextualidade; e- desenvolver a postura crítica diante do texto; f- propiciar ao educando a criação do seu próprio texto, por meio do exercício e fortalecimento de sua capacidade cognitiva-conceitual.
Dessa forma, considerando-se a leitura como um processo de interação, pode-se dizer que ao se instituir como sujeito do discurso, o indivíduo constitui-se, ao mesmo tempo, como interlocutor, o OUTRO, que é por sua vez constituído do próprio EU; e nesse encontro, ao se identificarem como interlocutores (eu–outro) instaura-se o processo de significação do texto.
Assim, ao se falar em leitura como processo de interação, exige-se que a escola esteja inserida num modelo de uso social da linguagem. Deve-se considerar como elementos constitutivos da produção de sentido: o texto, os sujeitos interlocutores, o contexto sócio-histórico, o explícito e o implícito no texto e a intertextualidade, para que o indivíduo possa agir crítica e criativamente, fazendo-se sujeito historicamente capaz. Nesse sentido, sobre os processos de significação, Orlandi (1988) nos diz que:

É pela reflexão sobre a determinação histórica desses processos que vemos a produção da leitura como parte constitutiva deles.
(...) quando lemos, estamos produzindo sentidos (reproduzindo-os ou transformando-os). Mais do que isso, quando estamos lendo, estamos participando do processo sócio-histórico de produção de sentidos e o fazemos de um lugar e com uma direção histórica determinada.

Essa leitura, que, segundo Lajolo, é obrigação da escola prover, é o primeiro tecido a ser tramado para que possamos permitir ao nosso leitor em potencial a tessitura da leitura literária, tão exigida como programa a ser cumprido, mas tão sem retorno em forma de experiência significativa para nossos alunos e por que não dizer, o nosso calcanhar de aquiles, ou a nossa grande frustração.
De Fernando Sabino a Machado de Assis: invertendo a cronologia literária.
Entendemos que os procedimentos de leitura devem estar de acordo com cada realidade. Toda ação adequada, que proporciona o interesse, o gosto e o prazer de ler, conquistando o leitor em situações participativas, lúcidas, questionadoras, é válida. Pensando nisso é que, para resolver o impasse já levantado, o de propiciar ao aluno a leitura de outros textos que não aqueles com os quais se identifica sem deixar de respeitar a sua alteridade, é que, como leitores maduros, conhecedores das duas realidades e interessados na formação do leitor, sugerimos um trabalho de motivação de leitura por meio de outra.

Resenhando as duas obras

''O Bom Ladrão'', de Fernando Sabino é uma obra contemporânea, bem ao gosto de nossos alunos. Embora correndo o risco de cair no pecado da generalização, dizemos isso com uma certa malícia: é um livro fino, com letras grandes e escrito em uma linguagem bastante compreensível, tanto para o que se rotula de faixa etária ideal, quanto para o estilo dos jovens com os quais convivemos na escola de ensino médio e fundamental, alvos de nosso interesse. Em seu prefácio, escrito por Carlos Faraco, já temos uma sinopse do livro. Esse autor comenta a relação de intertextualidade que há entre essa obra de Sabino e a de Machado de Assis, além de relacionar outras obras de renome, como O Primo Basílio, de Eça de Queiroz, e a Causa Secreta, conto machadiano. O ponto alto da trama de Sabino não é a pressuposição do adultério como chega a parecer já nas linhas iniciais do primeiro capítulo, devido à alusão ao enigma de Capitu, personagem da obra "Dom Casmurro", mas a rede de relações que ele tece com os demais textos, sugerindo, inclusive pelo título da obra ''O Bom Ladrão'', que ele, Fernando Sabino é ladrão de enredos alheios. Portanto, o tema central dessa obra não é, como já dissemos, o adultério e sim a força da intertextualidade, manipulada como fonte de polifonia e dado significativo do enredo, que nesse caso ocorre como forma de apropriação. Fernando Sabino se apropria de enredos alheios, mais precisamente de ''O Primo Basílio'' de Eça de Queiroz, de ''Dom Casmurro'' e de ''A Causa Secreta'' de Machado de Assis, fazendo uma coleção de enredos, um agrupamento, uma articulação de idéias e vozes alheias que se entrelaçam às vozes do narrador protagonista, desvinculando os textos de seus sujeitos anteriores, sujeitando-os a uma nova leitura. Respaldados em Sant' Anna (1985) podemos afirmar que Fernando Sabino faz uma apropriação parafrástica dos textos intertextualizados, uma vez que, em ''O Bom Ladrão'', observamos o prolongamento dos textos anteriores no atual.
O título do conto é significativo ainda que essa seja apenas uma inferência ditada pelo conhecimento de mundo e quiçá não partilhada pelos demais interlocutores . Pode ser perfeitamente uma alusão ao texto bíblico de Lucas (cap. 23 ver. 40), no qual o evangelista se refere à crucifixão de Jesus entre dois ladrões, quando um deles ficou conhecido na história da igreja como ''o bom ladrão''. É óbvio que esse não é o fio condutor central do texto, todavia, a questão do adultério de que possivelmente teria sido vítima o narrador da história tal como o marido da personagem Luísa em ''O Primo Basílio''; e a dúvida sobre a possível traição de Capitu, em ''Dom Casmurro'' estão presentes.
Contudo, é a referência à história de Machado de Assis que faz da intertextualidade o ponto máximo da narrativa, somando-se ainda à suposta idéia de que o autor, Fernando Sabino, possa estar agindo como um ladrão, apropriando-se de nomes e enredos alheios.
O próprio Machado de Assis, incorporando o personagem protagonista de ''Dom Casmurro'', Bentinho, faz menção, há cem anos, época em que nem se cogitavam os pressupostos da Análise do Discurso ou da Lingüística Textual, à questão da polifonia ou da intertextualidade, quando ao final de seu primeiro capítulo ''Do Título'', afirmou:

(...) Também não achei melhor título para minha narração; se não tiver outro daqui até o fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.
(Machado de Assis,: 1981, p. 11).

Publicado em 1899, ''Dom Casmurro'' relata pela voz de seu personagem protagonista um amor desenganado, cuja fala narrativa incorpora as vozes do marido enciumado, que é atemporal. Bentinho é quem nos dá a visão de mundo da narrativa assim como Dimas, titular da fala em ''O Bom Ladrão''. Por sua voz é que identificamos as demais personagens, como a de Capitu, que no texto de Sabino identifica-se com Isabel. Já nos primeiros capítulos do livro de Machado de Assis, encontramos alusão a outras obras da literatura universal, como Fausto do escritor alemão Goethe (1749-1832), Mulheres Patuscas de Windsor e Macbeth de Shakespeare (1564-1616) ou a Orlando Furioso do poeta da Renascença Italiana Ariosto (1474-1533) dentre outros.
''Dom Casmurro'' não é um livro fácil de ser lido, se considerarmos o interesse de nossos alunos pela linguagem da época em que foi escrito, o que dificulta a aproximação do leitor com o texto, dada a própria narrativa da obra que se caracteriza pela reflexão detalhada e às vezes, observando sob a ótica de nossos jovens, até cansativa. Nosso leitor em potencial quer ação, rapidez cinematográfica dos acontecimentos, coisa que é possível perceber na narrativa de Sabino, mas não na de Machado de Assis.
Eis o nosso ponto pedagógico: transpor de uma obra à outra subvertendo a cronologia. Primeiro estimular o leitor, ou melhor nosso pretenso leitor a se interessar pela história de ''O Bom Ladrão'', depois levá-lo, pelo recurso da intertextualidade, a querer conhecer a outra obra, ou as outras que tanto se fala nessa. Levá-lo a indagar quem seria essa Capitu e o que de fato ela fez. O tema central da obra, as reflexões do personagem protagonista/narrador que procura um encadeamento entre dois pontos de sua vida, sua adolescência e sua velhice, narrando no presente um quadro inscrito no passado e sob um ponto de vista altamente comprometido: o do narrador envolvido emocionalmente com a história, pois a narrativa mescla objetividade com a subjetividade manifestada pelo ressentimento do narrador, por estar relatando fatos que são dolorosos e que envolvem o seu sofrimento de marido traído, não estariam, por assim dizer, dentro do previsível, no foco de interesse inicial de nosso leitor. Essa seria uma etapa a ser percorrida por um leitor mais amadurecido.
Ambos, Sabino e Machado de Assis, ou melhor, Dimas e Bentinho reavivam nas lembranças do passado seus dramas conjugais, convivem com a incerteza da traição e com a possibilidade de terem feito de suas vidas o reflexo de uma mente perdida entre o liame da dúvida que arruinou o que poderia ter sido um casamento feliz. Ambos escrevem com a consciência de um escritor. Bentinho por diversas vezes em sua narrativa manifesta a vontade de publicar um livro, o que também parece ser motivo de inquietação por parte de Dimas, que semelhantemente ao personagem machadiano passa seu último dia recluso em uma propriedade afastada da vida citadina e, conforme afirma, mostra interesse em se dedicar aos assuntos literários, mais precisamente a um ensaio sobre o enigma de Capitu. Uma outra semelhança, que no caso do conto contemporâneo não é mera coincidência, é a insinuação da infidelidade das protagonistas femininas. Os nomes também não são escolhidos ao acaso: há uma estreita relação entre a escolha dos nomes no texto de Fernando Sabino e os outros textos por ele conscientemente intertextualizados. A escolha é proposital. Garcia, que no conto aparece como um primo da esposa de Dimas, alvo das suspeitas de infidelidade e razão indireta da confusão mental que faz o narrador/protagonista duvidar até mesmo de seu caráter, tem o nome de outro personagem de Machado de Assis, que era apaixonado pela mulher do amigo. Também se assemelha a descrição psicológica que o narrador de ''O Bom Ladrão'' faz de sua amada, a enigmática Isabel, que bem poderia ser uma versão moderna da Capitu: '' olhos de ressaca, a cigana com olhos oblíquos e dissimulada.''.
O ponto forte dos dois os textos é a narração em primeira pessoa, o distanciamento da objetividade, o julgamento parcial e subjetivo que ambos fazem em seus papéis de maridos traídos, ou se não, daquela dúvida mais angustiante de serem os últimos a tomar conhecimento daquilo que imaginam que todos já sabiam o tempo todo. Ambos visam ao auto-conhecimento, caracterizando assim um problema de busca de identidade comum àqueles que terminam seus dias reclusos em uma casa afastada tentando reconstituir, na velhice o tempo perdido, como admite Bento Santiago: ''o meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência.'' Como sugere Dimas:

'' Muita coisa pode ter acontecido antes e depois; hoje, todavia, se olho para o passado, vejo minha vida inteira nos dois anos que vivemos juntos. Isabel na frente e eu atrás.''
A narrativa de O ''Bom Ladrão'' inicia-se com uma alusão ao mistério relegado à história da Literatura por Machado de Assis: ''Ultimamente ando de novo intrigado com o enigma de Capitu'', sem falar que no desenrolar da trama, além das ''coincidências'', a que já nos referimos, um episódio envolvendo a aquisição de um exemplar do Livro ''Dom Casmurro é fio condutor de uma parte do enredo, e se encerra com um convite à investigação desse enigma: ''O que me leva de volta ao enigma de Capitu. Vamos a ele.''
Para pegarmos o gancho pedagógico, diríamos oportunamente que o conto não se encerra nessas palavras finais, mas traz à tona o mistério e nos permite instigar nossos leitores em potencial a investigarem, (e disso eles gostam) o enigma de Capitu.

À GUISA DE CONCLUSÃO

A Literatura foi sempre um sistema de troca intertextual, razão pela qual as pesquisas sobre intertextualidade nela se fundamentaram, ganhando forças nos estudos de Bakhtin e outros teóricos que, formalizando o estudo, deram suporte às relações que estabeleceram com outros aspectos da linguagem .
O intertexto aponta os objetos de texto de que se sustenta a enunciação, ao mesmo tempo em que organiza o ajuste enunciativo que constitui a formulação pelo sujeito, considerando que o sentido do texto está no espaço criado pelos interlocutores, uma vez que tanto a relação de um texto com outros textos, quanto os implícitos se derivam da incompletude que é própria da condição de existência da linguagem. (Cf. ORLANDI, 1998, p. 45).
Um texto tem relação com o que não é ele, mais ainda, é uma pluralidade de vozes que se intercruzam num ponto convergente e só se realiza em sua plenitude quando desenvolve várias linguagens simultâneas e interdependentes, permitindo que locutores e enunciadores falem, através de suas palavras, as palavras alheias. Assim, conforme destaca Kristeva (1969, p. 145) um texto é a absorção ou a transformação de outro texto, constituindo-se em um mosaico de citações. Aproveitar ao máximo as contribuições dos estudos sobre a intertertextualidade levando-os para a prática docente é o que sugerimos neste artigo, que espera ao menos ter suscitado um ponto para reflexão de como as teorias sobre a leitura e a indagação bastante estimulante: ''o que o leitor faz com o que lê'', nos direcionou a conduzir um ensaio sobre um tema que a exemplo do enigma de Capitu, também nos tem intrigado, como fazer o leitor?
À guisa de conclusão gostaríamos de encerrar nossas considerações ousando reproduzir em forma de citação uma afirmação de Geraldi,(1993, p. 113), que acreditamos bastante pertinente ao nosso objetivo pedagógico com o trabalho literário:

Recompor a caminhada interpretativa do leitor (que, evidentemente, pode ser o professor enquanto leitor de textos) exige atenção ao acontecimento dialógico que ocorre no interior da sala de aula. É por isso que a presença do texto constrói-se como possibilidade de reapropriação, pelo professor, e pelos alunos, de seu papel produtivo.

Referências

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. 12. ed. São Paulo: Ática, 1981.
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, Hucitec,1995.
BARZOTTO, Valdir Heitor. (Org.) Estado de leitura. São Paulo: Mercado de Letras, 1999.
CITELLI, Adilson. O. Conceitos de Leitura. São Paulo, Ática, 1990.
DELL'ISOLA, Regina. L.P. Leitura: inferências e contexto sócio-cultural. Belo Horizonte: Universitária, 1991.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas, Martins Fontes, 1985.
FOUCAMBERT, J. A leitura em Questão. Porto Alegre, Artes Médicas, 1994.
GERALDI, João. W. (Org) O Texto na Sala de Aula: Leitura e Produção. Cascavel, Assoeste, 1985.
____Portos de Passagem. São Paulo, Martins Fontes, 1995.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
KLEIMAN, Angela. Leitura: ensino e pesquisa. 2. ed. Campinas: Pontes, 1989.
KRISTEVA, Júlia. História da Linguagem, Lisboa: Edições 70, 1969.
LAJOLO, Mariza. & ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. 2. ed. São Paulo: Ática, 1998.
MANGUEL, A. Uma história da leitura. São Paulo: Compahia das Letras, 1996.
ORLANDI, Eni. P. Discurso e leitura. 2. ed. Campinas: Pontes, 1998.
____.( Org.) A leitura e os leitores. Campinas: Pontes, 1998.
SABINO, Fernando. O bom ladrão. São Paulo: Ática,1992.
SANT'ANNA. Affonso. R. Paródia, paráfrase & cia. São Paulo: Ática, 1985.

Publicado originalmente em:
RIBEIRO, O. M. . De Fernando Sabino a Machado de Assis: uma releitura de Dom Casmurro. Linguagem & ensino, Pelotas RS, v. 07, n. 01, p. 157-174, 2004

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