segunda-feira, 21 de julho de 2008

Por uma engenharia da leitura: construindo trajetórias para a leiturização.



Autora: Profa Dra Ormezinda Maria Ribeiro-Aya

Resumo

Neste trabalho pretendemos mostrar a importância da formação de leitores capazes de ler o implícito do texto e que o ensino de gramática na escola não deve ser visto somente no plano da nomenclatura, sem maiores preocupações com a relação língua/pensamento, mas deve, sobretudo, subsidiar a compreensão da leitura e propiciar a proficiência na escrita. Assim, apresentamos uma reflexão acerca das contribuições da Análise do Discurso (AD), da Lingüística Textual, e da Lingüística da Enunciação para a construção da leitura. O texto foi escrito com base em observações feitas a partir de uma pesquisa sobre leitura, realizada durante dois anos na Universidade de Uberaba: Construindo Trajetórias para a Leiturização e em uma vasta bibliografia sobre o tema, fóruns de discussão, seminários e estudos e organiza-se em duas partes: a primeira traz uma reflexão sobre o tema e a segunda intenta fazer uma leitura de um texto publicitário partindo das discussões teóricas apresentadas.

Palavras-chave: leitura; teoria/prática; pesquisa.

Abstract

This article contains practical results of a research about reading, which was carried out during two years at Universidade de Uberaba. The title of the paper is: Building Paths for the Reading Process. The data shown here was gathered from the day-to-day experience of a group of professors at the Language Laboratory (Laboratório de Idiomas-LID), during the Portuguese Language classes, involving students from the first and second terms of all the courses at Universidade de Uberaba. Apart from this, extra readings, forums, seminars and studies based on an ample bibliography about the subject, including material from post-graduate courses and masters degree dissertations. The concepts and theoretical principles that direct our observations and analysis, come from the Socio-Interactionist Linguistcs, with contributions form Discourse Analysis (AD), Text Linguistics, Speech Linguistics...We intend to establish the relationship between research/ teaching/ extension, which has been proposed by the University, taking into consideration that students and professors are active subjects of the learning process. This leads to democratisation and socialisation of academic knowledge, and establishes a means of interchange and participation of the internal and external communities in the university life, with the purpose of transforming society and associating theory to practise.

Key-words: reading; research; theory/practise

Ormezinda Maria Ribeiro

A areia, o saibro, o cimento: a argamassa
O texto, o contexto, o intertexto: a leitura.
O leitor, o texto, a ideologia: o homem
A argamassa, a leitura, o homem: a engenharia.


A compreensão do processo de leitura, de sua construção em sua complexidade, da maneira como se organiza, dos suportes teóricos que envolvem e encorpam essa prática e a compreensão do contexto e de seu papel, tanto no resgate do implícito, quanto do explícito no texto, são fatores que serão tematizados neste trabalho, no qual procuramos aliar as nossas conclusões de pesquisa bibliográfica e de campo, com nossa prática pedagógica.
Os conceitos e os princípios teóricos que norteiam nossas observações e análises originam-se na Lingüística Sócio-Interacionista, acrescentando-se as contribuições da Análise do Discurso (AD), a Lingüística Textual, a Lingüística da Enunciação...
Pela visão teórica aqui assumida, a leitura é reconhecida como um processo que transcende ao próprio texto. A compreensão do texto que se pretende ideal, implica a percepção das relações entre texto, contexto e intertexto. A leitura, nessa concepção, não está presa somente à palavra, mas a todo um mundo subjacente a ela, que vai sendo construído, antes mesmo de sua convenção. O que é mister considerar também o que não é imanente ao texto, mas que o circunda, tecendo a sua rede de significações.
A compreensão do processo de leitura, por ser algo tão complexo e interpretado muitas vezes como um fim em si mesmo, levou-nos a procurar uma maneira de expressão que, aproximando-se de algo concreto, pudesse ser mais perceptível, enquanto teoria que norteia uma prática. Então, achamos por bem apropriarmo-nos da linguagem da Engenharia e, por meio da metáfora da construção, figurativizar esta imagem, tanto na escolha do título, como na organização de nosso texto, a fim de apresentarmos a dinâmica do processo de leitura.
Entendemos que esse processo de construção da leitura, aliado às questões sociais que isso envolve, deve ser compreendido na escola e aí também efetivado, evitando a tradição de ruptura que caracteriza o saber escolarizado no Brasil. Assim, organizamos uma parte teórica com o objetivo de fundamentar e respaldar nossa proposta, o que chamaremos de ''projeto da obra'' e uma parte prática que chamaremos de ''execução da obra''.
Então, mãos a obra...

Construindo trajetórias para a leiturização: o projeto

“A linguagem cria uma imagem do mundo. Construímos nosso pensamento com os tijolos da linguagem, como um arquiteto constrói uma casa. A linguagem é obra comum e contínua de todos os membros do corpo social. Língua e sociedade são inconcebíveis uma sem a outra. ” (CLARET, 1980)

A importância social da leitura revela-se a partir dos valores que essa prática adquiriu nas sociedades urbanas modernas. A habilidade do falante na condução e adequação dos atos discursivos, principalmente em interações públicas, pressupõe seu acesso aos diversos códigos e variedades que compõem o repertório lingüístico da comunidade. Dessa forma, o domínio da leitura (e por conseguinte da escrita) em sociedades tecnológicas torna-se garantia de sucesso social, uma vez que grande parte dos processos discursivos são determinados pelas condições de uso e pelo acesso à norma padrão.
Mas, apesar dessa constatação, somente a partir da década de 70, no Brasil, é que a leitura foi alçada à condição de campo de investigação teórica e metodológica. O desenvolvimento recente das ciências da linguagem trouxe novas abordagens e conferiu à leitura o status de ciência. Dessa forma, a leitura não apenas tornou-se campo de pesquisa, como também desvelou um dos grandes, senão talvez, o maior fracasso educacional que é a aprendizagem da leitura nas escolas brasileiras.
Criar condições para o aluno desvendar o mundo e interagir de maneira crítica por meio da leitura, deveria ser o objetivo precípuo das agências de letramento. Constata-se, no entanto, que a prática de leitura na escola fracassa justamente pela forma como é operacionalizada. A leitura do texto, quando não é pretexto para se ensinar gramática normativa, é trabalhada linearmente com a decodificação de conteúdos a serem avaliados. Soma-se a esses fatores, o fato de se reduzir a leitura apenas a obras literárias, tornando o processo artificial e particularizado. A escola não contribui no sentido de explicar os usos e funções da escrita, além de não estimular a leitura de maneira conveniente. As diversidades de práticas discursivas que caracterizam as várias formas de leitura são, pois, reduzidas às de prestigio na tradição escolar.
Tais práticas não estão voltadas para a concretização de um pressuposto geral básico que é o da articulação entre função social da leitura e o papel da escola na formação do leitor. No lugar de se trabalhar a produção de sentido, a crítica, a interação, dá-se espaço apenas à autoridade da voz do professor que perpetua a escola como o lugar privilegiado do repasse do conhecimento, compelindo o aluno a escutar, copiar e reproduzir. Também não se dá espaço para a vivência da cidadania inovadora, pois não se cultiva, em momento algum, o sujeito capaz de definir, de testar e de contestar.
Ora, sabe-se que a leitura implica, ao mesmo tempo, a competência formal e política e que, nesse quadro, também a escrita representa a realização da autonomia do sujeito que encontra na leitura não apenas a maneira erudita de ver ou de realizar o armazenamento passivo das informações, mas também a demonstração concreta de que é possível saber pensar para compreender e para melhor intervir. E para que a leitura se frutifique na devida competência e na devida cidadania, precisa da escrita, da redação própria, da formulação pessoal, a produção de um outro texto: o texto do próprio leitor, pois em certo sentido, como diz Austin (1990), “dizer é fazer”.
É urgente superar a passividade que domina a sala de aula e buscar na leitura (e, consequentemente, na escrita) o seu impacto histórico, fazendo o aluno compreender o contexto sócio-histórico em que está inserido, para que, ao fazer parte da construção da leitura, faça parte da construção da sua própria identidade social. Só assim ele poderá apresentar-se com competência própria, realizando-se como sujeito ativo, crítico e participativo.
Ao se propor um ensino produtivo e eficaz da língua portuguesa, dever-ser-ia, por conseguinte, mudar toda a concepção de aprendizagem de leitura. O professor não somente ensinaria o aluno a ler (decodificar) o que o autor disse, mas estaria muito mais voltado para as estratégias que propiciassem ao aluno a habilidade de ler o que o autor quis dizer. Ajudar o aluno a desvendar o mundo por meio da leitura é proporcionar o desenvolvimento de sua consciência metacognitiva, o que tornaria, além de alfabetizado, letrado. Para desencadear esse processo, é mister que a leitura seja para o aluno um processo coerente. A coerência resulta de uma conexão conceitual cognitiva entre os elementos do texto e seu receptor, é um princípio de interpretabilidade e compreensão do texto para o leitor.
Foucambert (1994) sugere que as escolas deveriam transformar os alunos em leitores e esclarece que o problema da leitura só será resolvido quando as pessoas passarem a ser leiturizadas, em vez de alfabetizada, segundo esse educador, o aluno deveria, desde os primeiros anos de escola, ter contato com a linguagem escrita, que não deve ser mera transcrição da linguagem oral, mas sim um instrumento realmente eficaz para a reflexão e a manipulação de conceitos.

A redefinição da leitura

A urgência de se associar a leitura à construção de sentido é ponto básico das diversas pesquisas que realmente objetivam trabalhar o letramento como forma global de aprendizagem. A mudança de atitude do professor tanto na identificação do processo como no desenvolvimento de uma leitura de construção de sentido é, ao nosso ver, o ponto de partida para um trabalho eficiente e, realmente significativo se objetiva tornar o educando um leitor proficiente. A prática deve ainda levar o aluno ao uso competente da escrita que passa, de forma obrigatória, pelos processos de leitura. A preocupação em formar alunos leitores constitui hoje o eixo norteador das transformações educacionais que compõem a grande demanda social atual.
Percebe-se entretanto que o trabalho de leitura para os alunos é algo penoso e um dos motivos, segundo Kleiman (1992), é que essas práticas desmotivadoras são sustentadas por concepções equivocadas sobre a natureza da leitura: dá-se ênfase aos elementos estruturais da língua em detrimento dos significados. São, justamente, os processos inferenciais, levantamento de hipóteses e antecipação que irão completar o sentido do texto. A inferência é uma informação semântica não explicitamente estabelecida no texto, mas gerada pelo leitor durante o processo inferencial de especificação de proposições. As inferências na compreensão do texto são fundamentadas em conhecimento de mundo compartilhado e muito desse conhecimento é produto cultural e socialmente determinado.
O contexto cultural constitui um fundamento básico para a compreensão do texto. Cada indivíduo pertence a um grupo social e os contextos social e cultural encontram-se intimamente correlacionados. As inferências geradas dependem, portanto, do conhecimento de mundo prévio do leitor. Dessa forma, ao se ler o implícito no texto, integram-se os dados à própria experiência de mundo do leitor de acordo com a cultura em que está enraizado. A partir dessa abordagem sócio-cultural, o professor estaria apto a aceitar inferências que não reproduzissem sua própria ideologia, bem como ser um educador no sentido mais amplo da palavra, ao trabalhar as expressões sociais de diversos grupos, levando seus alunos a uma visão mais amadurecida e reflexiva da cultura do outro.
Dell`Isola (1991) aponta a necessidade de se trabalharem os três níveis de leitura assim caracterizados: em primeiro lugar, a leitura objetiva, na qual se aborda o que está explícito no texto, fazendo-se levantamento do léxico contextualizado; em segundo lugar, a leitura inferencial na qual o aluno é levado a detectar as inferências, isto é, o que está implícito no texto. Esse nível de leitura é essencial, pois o aluno faz as suas inferências baseando-se na sua visão de mundo, suas experiências e sua ideologia; enfim, no seu contexto sócio-cultural. É o momento da interação leitor-texto: o leitor, durante a leitura, age sobre o texto e contrai significados de acordo com as suas perspectivas e sua visão de mundo. Sendo assim, é lógico que o sentido de um texto não será o mesmo para todos os alunos, uma vez que “leitura” é um processo em que o leitor participa não decodificando sinais, mas, sobretudo, dando sentido aos sinais, em terceiro lugar, a leitura avaliativa, na qual o aluno extrapola o texto, manifestando sua postura crítica, a partir de suas ideologias, julgamentos pessoais diante das idéias expressas pelo autor, sendo, dessa forma, uma ponte para a produção do texto.
Ao se trabalhar a leitura, nos seus três níveis, pretende-se, entre outros aspectos, os seguintes: a- desenvolver uma leitura, como construção de sentidos; b- trabalhar o implícito no texto, desenvolvendo processo de inferências; c- ampliar a visão de mundo compartilhada ou não, orientando o aluno a compreender a cultura do outro, relativizando seus pontos de vista; d- desenvolver a percepção da intertextualidade; e- desenvolver a postura crítica diante do texto; f- propiciar ao educando a criação do seu próprio texto, por meio do exercício e fortalecimento de sua capacidade sócio-cognitiva-conceitual.
Dessa forma, considerando-se a leitura (e a escrita) como um processo de interação, pode-se dizer que ao se instituir como sujeito do discurso, o indivíduo constitui-se, ao mesmo tempo, como interlocutor, o OUTRO, que é por sua vez constituído do próprio EU; e nesse encontro, ao se identificarem como interlocutores (eu–outro) instaura-se o processo de significação do texto.
Assim, ao se falar em leitura como processo de interação, exige-se que a escola esteja inserida num modelo de uso social da linguagem. Deve-se considerar como elementos constitutivos da produção de sentido: o texto, os sujeitos interlocutores, o contexto sócio-histórico, o explícito e o implícito no texto e a intertextualidade para que o indivíduo possa agir crítica e criativamente, fazendo-se sujeito historicamente capaz. Nesse sentido, sobre os processos de significação, Orlandi (1988, p. 45) nos diz que:

“ é pela reflexão sobre a determinação histórica desses processos que vemos a produção da leitura como parte constitutiva deles. (...) quando lemos, estamos produzindo sentidos ( reproduzindo-os ou transformando-os). Mais do que isso, quando estamos lendo, estamos participando do processo sócio-histórico de produção de sentidos e o fazemos de um lugar e com uma direção histórica determinada.”


Quando lemos, estamos nos inteirando da forma de pensar e de ver o mundo por outrem, mas em constante interação com nossa forma de enxergar esse mesmo mundo. E tudo isso está simbolicamente organizado, formatado em uma língua, sistematizada por uma gramática.
Em termos gerais, gramática pode ser entendida como um estudo sistemático de todos os casos gerais do mecanismo lingüístico ou dos fenômenos lingüísticos, visando ao estabelecimento das normas de boa linguagem. (RIBEIRO, 2001, p. )
Entendemos que para se fazer um trabalho eficiente com a leitura e aprodução de textos nas escolas é imprescindível desenvolver a competência comunicativa em nossos alunos o que significa oportunizar o exercício dos mais variados tipos de construção lingüística, pois esses alunos irão se deparar ao longo de suas atividades acadêmicas, sociais ou profissionais com situações de comunicação as mais diversas possíveis. Os níveis e os registros requeridos serão múltiplos e não há modelo a ser seguido, nem mesmo a ser condicionado. Portanto, num projeto de leitura, o alicerce está no trabalho com a gramática. Não no sentido que freqüentemente tem sido dado nas escolas: a gramática ensinada como um manual de regras e imposições sem mostrar a relação língua/pensamento. Esse ensino, para a eficiência do trabalho com a leitura, comporta uma outra dimensão: a posição do professor e do aluno como interlocutores.
Ler é construir, é perceber o que está, de certa forma, organizado. Essa organização prévia, que nos chega aos olhos e à mente, passa por uma gramática, a base “invisível” da construção.

Estabelecendo os alicerces da construção da leitura: o papel da gramática no ensino de língua materna

“Saber falar significa saber uma língua. Saber uma língua significa saber uma gramática. (...)
Saber uma gramática não significa saber de cor algumas regras que se aprendem na escola, ou saber fazer algumas análises morfológicas e sintáticas. Mais profundo do que esse conhecimento é o conhecimento (intuitivo ou inconsciente) necessário para falar efetivamente a língua .” Possenti (1997, p. 30)

Com vistas à maior eficiência do trabalho com a leitura, pretendemos apresentar um estudo das relações entre o ensino da gramática na escola e o processo de formação de leitores proficientes, pois, se o propósito do ensino de gramática são as normas que organizam a expressão do pensamento, é imprescindível que se considere na perspectiva desse ensino, todos os aspectos que o envolvem. Não basta simplesmente estudar gramática para se expressar satisfatoriamente, ou para compreender o que se lê. Há que se compreender a linguagem como atividade mental que realiza o pensamento pela ação da língua. Vislumbramos, então, a necessidade premente de estabelecer no ensino de língua materna esse elo de ligação. É necessário compreender como se processa a passagem da idéia à forma para que a sistematização de seu estudo seja realmente eficiente.
O ensino de gramática mostra como funciona a língua, a infra-estrutura lingüística, ou seja, a gramática de cada língua não só se constitui no instrumento que permite a eclosão do pensamento, mas determina a forma que envolve a atividade mental, sintetizando tudo que se passa no espírito do enunciador. O sistema lingüístico é, portanto, o organizador de nossas percepções da realidade, tendo em vista que discernimos a natureza e a sociedade segundo as vias traçadas pela língua que falamos.
Entender que a relação língua/pensamento é fundamental para o ensino da gramática na escola já é um passo decisivo para que se estabeleçam novos paradigmas que conduzam à eficácia desse ensino. Todavia, a escola tem falhado quando privilegia o ensino da terminologia gramatical, quando separa o ensino de gramática do trabalho com a leitura e produção de textos, quando dá ênfase à prescrição desde as séries iniciais e
O dogmatismo da gramática normativa tem se transformado em motivo de críticas ou de simples aceitação passiva por parte de alguns de seus aplicadores, sem contudo levar a um exame racional que vise ao aprofundamento de questões práticas na escola, tais como: Por que ensinamos gramática? Se adotamos a gramática normativa como nosso manual de consulta, o fazemos simplesmente porque nossos professores também o fizeram, ou porque estamos conscientes de sua verdadeira função didática?
Diante do quadro deficitário da educação brasileira somos levados a procurar os seus responsáveis diretos ou indiretos, tornando-se comum atribuirmos a responsabilidade aos alunos, alegando que eles não pensam para escrever, que não se interessam, ou ainda que o nível de nosso corpo discente está cada vez mais baixo. Não raras vezes ficamos alarmados diante da precariedade do desempenho verbal de nossos alunos. Entretanto, esse alarme não passa de queixas que não evoluem para uma avaliação crítica e consciente dos problemas com os quais nos deparamos. Por força das evidências, temos que reconhecer que não só os alunos, mas também professores e o sistema de ensino protagonizam essa situação.
Delimitando mais a questão, em relação à confusão que freqüentemente ocorre no ensino da gramática na escola, podemos atribuir responsabilidades não só ao desconhecimento da fundamentação teórica que envolve essa aplicação, por parte dos professores, somado à insegurança na aplicação dessas teorias, mas também ao sistema escolar por ter legitimado essa atitude quando institucionaliza o equívoco. Ainda, no interior desse processo, o professor retoma, em seu trabalho pedagógico, o que tem sido considerado como ideal. Muitas vezes essa concepção é fornecida pelo livro didático, nem sempre elaborado à luz de teorias claras, constituindo-se em um grave complicador.
Esses livros, por diversas vezes, são confundidos com a gramática, como se essa tivesse tomado uma nova roupagem, ou seja, há uma forma equivocada de encarar o livro didático como uma gramática “colorida”. É certo que os autores de livros didáticos têm mostrado um esforço considerável para acompanhar a evolução dos estudos lingüísticos, esses livros têm se modernizado, procurando apresentar textos que captam as diversas áreas do conhecimento, contemplam um maior número de variações lingüísticas, procuram abordar questões de semiologia e teoria da comunicação, no entanto continuam insistindo no ensino da nomenclatura como o objetivo principal. O que agrava mais ainda a situação do ensino da gramática na escola é o fato de que muitos professores tomam o livro didático como modelo insubstituível e se mostram totalmente dependentes desse manual. Ali têm suas aulas prontas, com respostas perfeitas e adequadas com as quais as respostas dos alunos devem estar sempre e inexoravelmente de acordo. Muitas vezes o professor espera que o livro didático o substitua.
Seguindo a tradição pedagógica do ensino de língua Portuguesa nas escolas de ensino fundamental e médio, cuja tendência é investir no reforço das taxonomias gramaticais, de um modo geral na grande maioria dos manuais de ensino de Língua Portuguesa, o trabalho com o texto serve de pretexto para o ensino metalingüístico.
A maioria dos livros tidos como gramática tem como atividade básica o exercício de classificação das orações, ou a tarefa de depreender os significados dos morfemas da língua, com isso, espera-se que os alunos estejam preparados para a redação de textos e a agir com mais independência perante o material impresso a que têm acesso. Ilari, (1993, p. 57) destaca que ao proceder assim, a tradição gramatical, considera o texto como somatório de frases e como subproduto da gramaticalização e não como um todo orgânico, com regras e leis próprias.
Nossa experiência no ensino de língua materna, tanto no ensino fundamental e médio como no ensino superior, tem nos mostrado que o ensino de gramática em nossas escolas tem sido totalmente prescritivo, embasado nas regras da gramática normativa, cuja metalinguagem é incompreensível para os alunos: desde a 1ª série do ensino fundamental começa-se a despejar uma nomenclatura desprovida de significado para o aluno, que se vê obrigado a decorá-la sem compreendê-la. O resultado é o que encontramos no ensino superior: alunos que não sabem mais o que é substantivo, advérbio ou objeto direto, tampouco sabem construir uma sentença coerente e se mostram cada vez mais com dificuldades de expressar seu pensamento de maneira clara e objetiva, refletindo essa deficiência em todas as disciplinas que envolvem argumentação e reflexão.
O ensino da gramática tem seguido um caminho inverso ao seu objetivo: primeiro se ensina a metalinguagem, “o pode e o não pode” no uso da língua, quando o aluno não exercitou o bastante o seu uso efetivo, depois se espera que ele saiba desempenhar adequadamente a função comunicativa e estabelecer uma relação compreensível entre língua e pensamento.
Há que se implementar modificações estruturais nos centros de formação docentes em todos os níveis: cursos de magistério, licenciatura em Letras e sobretudo efetivar a formação permanente através de seminários de atualização e aprofundamento das questões que envolvem o ensino de língua materna visando à reflexão e a busca de uma melhor formação teórica.
Estamos conscientes de que o problema básico da ineficiência do ensino de gramática na escola se dá em razão da má formação do quadro docente. Sabemos que esse é um problema cíclico. De início temos o professor de nível fundamental, cuja formação básica exigida é o nível médio, ou seja, do professor que tem a difícil tarefa de alfabetizar um aluno falante da língua na qual será alfabetizado, só é exigido que tenha o curso de magistério de primeiro grau. Não se espera que esse profissional tenha em seu currículo uma formação pedagógica superior, nem tampouco que conheça a estrutura da língua na qual irá alfabetizar. O curso de Letras ou de Lingüística não é requisito essencial para que um professor possa ser um alfabetizador. O que temos presenciado nas escolas, principalmente nas escolas públicas, é uma distribuição de funções escolares considerando tão somente o tempo de serviço na escola, na rede ou na função. Isto significa que de acordo com sua antigüidade na instituição o professor pode escolher a turma que irá lecionar. Os professores com mais tempo de serviço, os mais experientes, na maioria das vezes, preferem turmas já alfabetizadas. Consequentemente, para os professores recém formados, ou com menos experiência, acabam sobrando às classes em processo de alfabetização.
Já dissemos que esses professores não trazem em seus currículos a formação básica necessária para compreender os mecanismos de organização da língua na qual irão alfabetizar. Muitas vezes, em razão da precariedade do curso médio que fizeram, não são ao menos leitores ou produtores de textos proficientes. Seus alunos, então, chegarão nas séries finais do ensino fundamental com sérios problemas de leitura e escrita. Problemas esses que comprometerão todo o curso, agravando-se mais ainda pelo fato de que também os professores dessas séries não tiveram em seus cursos de licenciatura a formação mínima exigida para uma real reflexão acerca da necessidade de um maior embasamento sobre a relação língua/ pensamento, uma vez que os cursos de licenciatura em Letras também têm privilegiado o conhecimento da gramática normativa somente no plano da nomenclatura, sem maiores preocupações com a relação língua /pensamento em um nível mais filosófico. Temos, então, que no ensino médio, especificamente no magistério de primeiro grau, os alunos já chegam simplesmente ignorando esses fatores e seguem repetindo o que lhes foi ensinado: a nomenclatura pura da gramática, sem contextualização ou aplicação prática. Resultado: não conhecem profundamente a estrutura da língua e não se encontram aptos a usar esta língua e muito menos a ensiná-la.
O ciclo se completa quando esse aluno, egresso de um curso médio que não lhe deu condições de desenvolver uma competência comunicativa ou de se posicionar como um leitor crítico, prepara–se através de um curso pré-vestibular para ingressar na Faculdade.
É sabido por todos que esses cursos, com vistas somente a garantir ao aluno uma vaga na Universidade, não fazem mais do que treiná-lo na estrutura da língua. No ensino de gramática abusam das regras e das exceções, fazendo com que o candidato decore as possíveis questões que cairão no vestibular, ou ainda criam uma “metodologia” própria que consiste em facilitar a memorização das regras da gramática normativa através de rimas, trocadilhos ou paródias. No que tange à língua em uso, ou ao ensino de redação, o problema nos parece mais grave, pois a maioria desses cursinhos limita essa atividade a uma cartilha de pode-não-pode, impedindo que o aluno se posicione como autor e enunciador de seu texto. Nessa cartilha o que predomina são as imposições arbitrárias e desprovidas de um fundamento, as quais o aluno deve seguir à risca para fazer jus a uma vaga na Universidade.
Assim, o aluno se comporta como mero preenchedor e lança mão de estereótipos sem fazer uso de sua condição de agente e senhor da linguagem nas suas mais variadas possibilidades de realização. Não se posiciona no contexto histórico-social, sendo assim, não opina, não reflete, apenas exercita o jogo, não se envolve nem se engaja, portanto, não promove a passagem do enunciador a autor. Não é responsável pelo que escreve, apenas registra graficamente. Logo, não diz. Não se responsabiliza no processo por suas falas. Ao descaracterizar o aluno como sujeito, a escola impossibilita-lhe o uso consciente da linguagem, pois, não há um sujeito que diz, mas um aluno que devolve ao professor o que lhe foi dito pela escola, caracterizando uma situação artificial. A escola, portanto, não capacita o aluno a superar as limitações da comunicação oral quando não promove situações autênticas de comunicação.
De acordo com Barros (1985, p. 45), é no ato de escrever que se aprende a redigir e é essa a condição para se adquirir possibilidades mais amplas de participação social, o que só pode ocorrer autenticamente em situações de comunicação.
Nesse aspecto é relevante o papel da atividade pedagógica que deverá fazer com que o aluno assuma esse papel social na sua relação com a linguagem, dentro e fora da escola, constituindo-se em autor, ou seja, promover a passagem da função de sujeito-enunciador para sujeito-autor .É nesse momento em que a reflexão lingüístico-pedagógica deve favorecer a atuação do professor de língua e promover o engajamento do aluno.
No entanto, o processo ideológico que está inserido na escola é que não permite a passagem do enunciador para o autor, fazendo com que o ensino prescritivo da língua se sobreponha ao descritivo e o professor acaba por se preocupar muito mais com o que não pode ser feito do que com o uso efetivo da língua, gerando uma cartilha de “pode-não-pode” e uma insegurança no aluno que passa a acreditar que não sabe a sua língua.
O que se observa é que a escola estabelece relações muito rígidas e bem definidas, criando situações em que o aluno se vê obrigado a escrever limitado por padrões previamente estipulados e crente de que seu texto será julgado e avaliado por um único leitor: o professor. E assim, não escreve o que realmente acredita, mas aquilo que pensa que o seu leitor (o professor) aprovaria, escolhendo os signos de acordo com o que seu professor espera que ele escolha, não se comportando, portanto como alguém que diz algo através de seu texto, mas como alguém que repete o que lhe foi passado. Daí nasce a confusão: não é o pensamento do produtor que vai ser refletido através da língua pelo agenciamento de um autor, mas o pensamento ditado pelas regras da escola.
Formado professor, esse aluno repete o modelo que aprendeu na escola e segue treinando seus alunos no uso da nomenclatura gramatical e no “pode-não-pode” da redação.
Se compreendermos a linguagem como atividade de interação em que forma e sentido são funções das circunstâncias da enunciação e que o produtor, operando com um conjunto de fatores, promove suas escolhas no código e decide quanto à estruturação conceitual e formal do texto, estaremos aptos a criar em sala de aula condições mais propícias para a produção e compreensão da escrita. Neste aspecto é relevante observar que para que isso ocorra é necessário compreender a relação língua/pensamento. O que implica uma inserção do sujeito na cultura, uma posição dele no contexto histórico–social, abordando a linguagem como um processo dinâmico e vital em permanente construção, ou seja, como um fato social.
O ensino descritivo, juntamente com o produtivo, deveriam se sobrepor ao prescritivo, pois conhecendo e compreendendo o funcionamento de sua língua, em diversos níveis e em diversas situações, o aluno poderá utilizá-la de maneira adequada e aumentar os recursos que possui, para apropriar-se da maior escala possível das potencialidades de sua língua, em toda e qualquer situação em que tenha necessidade dela, constituindo-se então em autor e não somente em enunciador da fala dominante.
A criação de condições de produção mais favoráveis é uma questão de convicção do professor em determinadas concepções teóricas. É a percepção da linguagem como atividade interacional e do texto como resultado do trabalho do produtor sobre as circunstâncias de enunciação que poderá levar o professor a buscar uma relação mais produtiva com seus alunos, colocando-se como interlocutor de seus textos e fazendo-se atento às condições mais “naturais” de produção da escrita, posto que impedida a intencionalidade e a perspectiva interativa não há de onde partir e nem aonde chegar, uma vez que o texto se constitui no processo de interação.
Desenvolver a competência comunicativa do aluno envolve torná-lo consciente e atento ao processo de construção do texto. Nem sempre será possível, na escola, proporcionar aos alunos situações autênticas de produção de texto. E se a intenção do professor é criar em sala de aula condições mais apropriadas para a produção da escrita, um fator imprescindível é se posicionar como leitor, e não como juiz.
Com essas reflexões chegamos à conclusão de que apesar do fato de os estudos lingüísticos terem evoluído consideravelmente no plano teórico, a nossa prática pedagógica não caminha no mesmo ritmo, dadas as dificuldades da aplicação voltada para a língua tal como ela é: um mecanismo vivo. Assim como na teoria Chomskyana uma criança aprende uma língua se atinge aos requisitos: maturidade, exposição e prontidão, também para a prática de um ensino de uma gramática contextualizada, devem estar seus aplicadores desta forma preparados.
Há um novo traçado epistêmico que constrói o conhecimento a partir das realidades sócio-culturais-regionais significando uma virada importante na estrutura do currículo. De modo algum se pode imaginar a escola separada do contexto de vida de seus alunos, o que significa dizer que a sua linguagem deve ser considerada.
Se o propósito do ensino de gramática são as normas que organizam a expressão do pensamento na língua e a língua é uma entidade impalpável, abstrata, que determina o pensamento, essa não deve ser desvinculada de seu sujeito, pois sendo energéia, é atividade do falante e é a linguagem desse falante que deve ser considerada em todos os seus aspectos. Cabe ao professor de língua, conhecer a fundamentação teórica que sustenta o seu ensino, para refletir acerca de sua aplicação na escola. O que tem sido feito até hoje tem sido uma mistura da gramática tradicional e da Lingüística moderna no ensino da gramática, sem contudo se aprofundar na questão teórica que envolve essa aplicação.
Ainda se observa um abismo muito grande entre os estudos lingüísticos e os problemas práticos no ensino de língua materna. Não se pode simplesmente pretender criar um manual de receitas para aplicação, posto que as relações entre teoria lingüística, descrição de uma língua e seu ensino não são tão diretas como se acreditava no passado.
Não há uma fórmula mágica para resolver o problema do ensino de gramática na sala de aula, mas o conhecimento teórico proveniente de leituras especializadas, de pesquisas que levem o professor a indagações e reflexões acerca de sua prática é um passo decisivo no processo de mudança. Mudança esta, que implica, inicialmente, uma mudança de postura frente ao próprio objeto de trabalho, seguida de uma modificação nos hábitos e atitudes docentes. Urge operar inovações tanto na escolha de novos conteúdos como na concepção metodológica. A competência na diferenciação e aplicação dos instrumentos metodológicos indicará o espaço e a autonomia profissional de cada um.
Outra consideração a ser feita é a de que, embora a Lingüística seja uma ciência descritiva e não prescritiva, o uso descritivo não exclui o uso prescritivo da língua. Há que se consultar, sim, a gramática normativa da língua, mas não tomá-la como verdade única e incontestável. Numa sociedade desigual, em que a disputa entre as classes é evidente, o não uso da língua padrão representa a alienação do indivíduo e nenhum acesso ao poder.
O ensino de língua materna deve voltar-se para a expansão das potencialidades do homem, tornando-o mais consciente de si mesmo e de seu papel social. E isso só ocorrerá, se, enquanto aluno, ele exercitar a capacidade de criar e de buscar o conhecimento, refletindo acerca de suas potencialidades. Nesse prisma, a opção pelo ensino produtivo da língua é que vem dar suporte ao nosso trabalho e a Lingüística se apresenta como de fato deve ser toda ciência: eficaz e hábil na constatação dos problemas que cercam os fatos de língua numa perspectiva que alcance o aluno do século XXI, observando as novas concepções metodológicas e colocando sempre o aluno como sujeito e protagonista da aprendizagem.
O propósito do ensino de língua materna deve ser o de partir do conhecimento prévio do aluno, levá-lo do senso comum ao conhecimento científico, por meio de atividades que o façam levantar hipóteses, comparando, analisando, aceitando ou refutando argumentos. Dessa forma, professor e aluno interagem em busca do conhecimento, através de reflexões, utilizando-se diferentes recursos. Neste trabalho deve-se levar sempre em conta, que a aprendizagem é um ato do aluno, isto é, que o conhecimento é fruto de sua construção, e que o professor é aquele que, baseado mas teorias de como se aprende e como se ensina, interfere nesse processo de construção do conhecimento, desestabilizando as hipóteses falsas formuladas pelo aprendiz, mas colocando sempre o discente como protagonista de sua própria aprendizagem.
Assim, o estudo da gramática é proposto na perspectiva de sua organização estrutural, da sua tessitura na organização do texto, e que evidencia os elementos da língua, como os operadores discursivos e os itens lingüísticos responsáveis pelo estabelecimento de relações entre a língua e o pensamento, de como se articulam os mecanismos e traços lingüísticos que servem de suporte à construção do quadro da língua.
Já dissemos que a boa formação dos textos passa pela gramática e não somente porque o texto é composto por frases que têm uma estrutura gramatical. Mas porque é na produção lingüística que o falante joga todo o domínio dos processo de mapeamento conceptual e de síntese textual, dependendo, portanto, de uma “gramática” que proceda essa organização. Reiteramos que para se expressar bem em uma língua é necessário mais do que o domínio do modo de estruturação de suas frases, é preciso saber combinar essas unidades sintáticas através de um agenciamento sintagmático, o que envolve a capacidade de adequar os enunciados às situações, aos objetivos da comunicação e às condições de interlocução. E isso tudo se integra na gramática.
Isso implica criar uma atitude que faz do ensino da gramática uma procura de coerência: as proposições estão em função de um significado, e devem ser interpretadas em função desse significado; as escolhas lingüísticas do autor não são aleatórias, mas são aquelas que, na sua visão, garantem a coerência de seu discurso e esse discurso tem uma forma na estrutura lingüística, o que deve ser percebido pelo estudante de gramática, não apenas decorado, ou repetido.
Como a escrita está intimamente associada à leitura, são processos simultâneos e interdependentes, ou seja, a leitura interage na escrita e a escrita interage na leitura, o aluno descobrirá que escrever significa operar escolhas lingüísticas de modo a expressar seu pensamento com organização, clareza e adequação, na modalidade escrita da língua.
Somente encarando o ensino da gramática como um processo simultâneo e concomitante ao ensino de leitura é que a escola estará apta a preparar o professor para desenvolver a habilidade de leitura crítica no aluno, ampliando sua capacidade de pensar e refletir, com conteúdos programáticos aprofundadores capazes de desenvolver plenamente sua competência comunicativa.
O objetivo final de um ensino de língua proficiente deveria ser, portanto, o de formar um leitor crítico capaz de ler o implícito do texto, refletir sobre o pensamento do autor, sobre as eventuais estratégias utilizadas por ele para mascarar seu ponto de vista. E isso só será possível se as aulas de gramática deixarem de dar ênfase exagerada ao ensino da nomenclatura ou do preenchimento de lacunas e privilegiar a reflexão acerca da estrutura da língua bem como a sua relação com o pensamento.
Já dissemos que a prática de leitura na escola fracassa justamente pela forma como é operacionalizada. A leitura do texto, quando não é pretexto para se ensinar gramática normativa, é trabalhada linearmente, com a decodificação de conteúdos a serem avaliados. A escola não contribui no sentido de explicar os usos e funções da escrita, além de não estimular a leitura de maneira conveniente. As diversidades de práticas discursivas que caracterizam as várias formas de leitura são, pois, reduzidas às de prestigio na tradição escolar, ou seja, não há uma preocupação em preparar o aluno para compreender as várias possibilidades de expressão lingüística nas suas mais diversas variedades.
Tais práticas não estão voltadas para a concretização de um pressuposto geral básico que é o da articulação entre função social da leitura e o papel da escola na formação do leitor. No lugar de se trabalhar a produção de sentido, a crítica, a interação, dá-se espaço apenas à autoridade da voz do professor que perpetua a escola como o lugar privilegiado do repasse do conhecimento, compelindo o aluno a escutar, copiar e reproduzir.
Alterando-se essa situação, o professor não somente ensinaria o aluno a ler (decodificar) o que o autor disse, mas estaria muito mais voltado para as estratégias que propiciassem ao aluno a habilidade de ler o que o autor quis dizer.
Para desencadear esse processo, é mister que a leitura seja para o aluno um processo coerente. A coerência resulta de uma conexão conceitual cognitiva entre os elementos do texto e seu receptor, ou seja, entre a escolha lingüística e a intenção do autor que será facilmente compreendida na medida em que se compreende como se dá o processo de formatação do pensamento na língua e esta correlação só será possível se o ensino de gramática estiver voltado para esse objetivo.
Uma pedagogia da gramática concebida segundo esses princípios poderia reduzir consideravelmente a distância entre as aulas de gramática e de produção textual, fazendo com que o aluno comece a pensar por escrito e não seja somente um mero preenchedor de folhas no exercício de redação ou apenas um depositário da nomenclatura gramatical, mas que no exercício da linguagem possa realmente saber quem é o sujeito da ação, posicionando-se como tal.
A análise lógica deveria se fixar como exercício de descoberta das articulações comuns à linguagem e ao pensamento permitindo que se encontre na língua unidades e conexões que correspondam às unidades e conexões do pensamento. Assim, o aluno será capaz de compreender como a mente humana estabelece conceitos, concebe idéias, formula juízos e os encadeia em raciocínios através da língua, que servirá, então, como roupagem para um pensamento que não pode se materializar a não ser enformado na língua..
Analisando a trajetória da disciplina da gramática verificamos que a nossa gramática ocidental remonta à gramática grega. O surgimento da atividade gramatical entre os gregos foi sobretudo condicionado por uma situação histórica e cultural que floresceu a partir de séculos de vivência intuitiva e muitos séculos de exercício de um pensamento teórico estabelecendo as bases para a efetivação de uma atividade prática teoricamente fundamentada.
Sendo a gramática uma disciplina, que, pelas próprias condições em que surgiu, aparece com finalidades práticas, mas assentada sobre as bases de uma disciplinação teórica do pensamento sobre a linguagem, entendemos que também hoje, ao proceder a sua aplicação não podemos ignorar de modo algum o que se tornou o seu alicerce: sua configuração teórica.
O ensino de gramática na escola, deve, portanto, se espelhar na própria marcha da instituição da gramática: partir de um esforço de análise do pensamento conceptual, dar uma atenção significativa aos fatos de linguagem para se chegar ao condicionamento lingüístico necessário à manifestação do pensamento através da língua.
Não se chega ao pensamento simplesmente pelo conhecimento da nomenclatura. Questionando problemas da relação entre a linguagem e o pensamento, constrói- se uma teoria do conhecimento, ainda que com objetivos teóricos, mas que possivelmente desencadearão uma prática sistematizada e formalizada dando corpo ao conteúdo de nosso ensino: as formas de organização do pensamento que só pode se materializar através da língua.
É pela forma que alcançamos o pensamento conceptual. É apreendendo na palavra a representação do que está no espírito que damos corpo as nossas idéias saindo da essência imaterial para a percepção e a representação do nosso pensamento. É a linguagem que traduz as relações do homem com o mundo cabendo-lhe a função de organizar o pensamento dentro de uma estrutura gramatical.
O pensamento não é anterior à linguagem. Pensamento e linguagem provavelmente nasceram juntos e embora sejam independentes necessitam um do outro para serem manifestos. As relações mútuas que o espírito mantém com a forma de representação são, ou deveriam ser o objeto de interesse de todo aquele que se propõe a ensinar gramática, pois o ensino da gramática deve ter por excelência o propósito de mostrar de forma clara esta relação, posto que a língua, como estrutura, é o cunho do pensamento.
Acreditamos que é possível conciliar nas aulas de gramática as contribuições da Lingüística Moderna à gramática normativa, entretanto, é necessário que se conheça a bem deste ensino, o processo do que se transformou na disciplina gramatical para que a orientação do professor seja eficaz, a fim de que com esse ensino, possa ser tirado o maior partido possível da ligação entre a fala do aluno ( reflexo de seu pensamento ) e situações potenciais de fala, proporcionando, na escola, exercícios autênticos, evitando-se, assim, que o professor gaste o maior tempo de suas aulas no ensino da terminologia gramatical, em detrimento do exercício da língua como um mecanismo dinâmico.
O processo de construção da leitura seria, então, alicerçado na estrutura da língua materna, cujos padrões estão normatizados pela gramática. Recorrendo à metáfora da construção vamos dizer que a gramática está para a construção da leitura e da escrita assim como o alicerce está para a edificação, suas regras e normas seriam as bitolas e módulos a partir dos quais o projetista dá vazão a sua criatividade, na produção de uma obra única, apesar de seguir parâmetros convencionados.


No canteiro da obra


''Mas, em termos de ensino, não basta teorizar ou discursar sobre o valor da leitura. É preciso construir e levar à prática situações a serem concretamente vivenciadas de modo que o valor da leitura venha a ser paulatinamente sedimentado na vida dos educandos.'' (SILVA,1988, p. 85)


Com este ''gancho'' de Ezequiel Teodoro, cuja proposta de estruturação de elementos para uma nova pedagogia da leitura está ''ancorada numa concepção que faz equivaler o ensino da língua à produção ou prática da língua por sujeitos (educador e educandos)'' (SILVA, 1988), apresentaremos a seguir um trabalho com a leitura, que, de certa forma, representa a prática da construção da leitura, sem a pretensão de constituir um modelo ou receita.

Heterogeneidade de teorias: janelas na construção da leitura.


''Este é, a nosso ver, o pecado capital da escola pública mal direcionada: assume o compromisso de ensinar toda a população a ler, mas cumpre o compromisso pela metade. Os alunos chegam a ler, mas apenas decodificando os textos, sem alcançar a compreensão verdadeira nem, muito menos, a capacidade de crítica. Iludem-se com o que lêem, porque está impresso, aceitam tudo que vêem escrito, não são autônomos diante do texto.''
(Molina, 1992, p.11)

No campo das ciências humanas voltadas para as análises do processos de leitura, nem sempre é possível evidenciar suas articulações comuns, talvez devido à especialidade do pesquisador ou à forma restrita como o conhecimento científico ainda é veiculado. Este fato repercute na postura do professor que, muitas vezes, alheio às diversas pesquisas na área, decide supervalorizar a prática em detrimento da teoria. É por esse motivo, que se faz necessária a retomada das bases teóricas, não a uma perspectiva restrita, mas interdisciplinar que possibilite a análise das articulações e das múltiplas possibilidades de aplicação dessas visões ao ensino de leitura em sala de aula.
O objetivo final de um ensino de língua proficiente deveria ser formar um leitor crítico capaz de ler o implícito do texto, refletir sobre o pensamento do autor, sobre as estratégias utilizadas por ele para mascarar seu ponto de vista.
Atualmente, o grande número de seminários, publicações e encontros científicos voltados para a leitura, contendo propostas teóricas e metodológicas, reflete tanto a urgência, quanto a necessidade de estudos nesta área.
A Socioligüística Interacional aponta a premente necessidade de se identificar os usos sociais da escrita nas diversas comunidades, servindo, assim de parâmetro para que haja uma continuidade destes usos na escola e não uma ruptura, como infelizmente vem acontecendo. Deste modo, também a Psicolingüística vem propondo um modelo de alfabetização que recupere o texto como construção de significado, salientando a inoperância da decodificação fragmentada de palavras ou frases.
A Lingüística Textual tem procurado analisar a leitura do ponto de vista da tessitura do texto, recuperando os elementos coesivos desse, como suporte da estrutura global de coerência. Podemos citar, ainda, a Análise do Discurso que visa salientar o funcionamento da compreensão na constituição dos processos de significação, como nos esclarece Orlandi (1988, p. 74).

“O sujeito leitor que se relaciona criticamente com sua posição, que a problematiza, explicitando as condições de produção da sua leitura, compreende. A compreensão supõe uma relação com a cultura, com a história, com o social e com a linguagem, que é atravessada pela reflexão e pela crítica”.

Dentro de nossas limitações, temos procurado, apropriar-nos dos resultados das investigações das mais diversas pesquisas que nos levem, em nossa prática docente, a construir um edifício mais sólido no trabalho com a leitura. E assim, incorporar, na reflexão sobre leitura, as contribuições que se inscrevem no âmbito das mais diversas teorias.
Preocupa-nos, nessa perspectiva de edificação da leiturização, a questão de como é construída a base de seu processo, nas mais diversas estruturas textuais. Daí a metáfora da construção.
Elegemos, para tecer algumas considerações acerca dessas questões, um texto publicitário, bastante difundido em revistas de circulação nacional, que visa oferecer um ''produto'', também por demais comum, se considerarmos o número de empresas que o oferecem, bem como o número de campanhas publicitárias em torno deste item: o seguro de vida.
Nesse texto publicitário da Nacional Companhia de Seguros, analisado sob a teoria de Jackobson, (1985) predomina a função conativa da linguagem, uma vez que tem como alvo o receptor, a segunda pessoa do ato da fala, visando influenciá-lo por meio de um estímulo:



1-''Você está formando sua família há anos, construindo dia a dia o que vai ser sempre o seu futuro. Você sonha, planeja, estabelece metas e os padrões a alcançar.''

A função conativa da linguagem se apresenta neste texto também através de ordens expressas pelos verbos empregados no imperativo:

2- ''Faça um seguro de vida, simples e sem burocracia.''

3-''Procure um corretor ou qualquer agência do Banco Nacional.''

Ou ainda pela presença do estímulo, marcando a centralização da mensagem no interlocutor:

4-'' Família com garantia tem muito mais para realizar'.

Nota-se ainda a presença de eufemismo, por se tratar de um assunto delicado, colocando-o para o leitor de uma maneira sutil e delicada com a intenção de sugestioná-lo a adquirir as apólices de seguro da Companhia Nacional, apelando para o que ele tem de mais caro:

5-'' A Nacional garante o amanhã de todos de sua família, no nível que você está sonhando, se por uma infelicidade, você não puder mais sonhar.''

A função referencial da linguagem também está presente nesta publicidade para fornecer ao leitor as seguintes informações acerca da Nacional Companhia de Seguros:

6-''Seguro de vida, simples e sem burocracia.''

7-''A Nacional garante o amanhã de todos de sua família, no nível que você está sonhando...''

Há ainda informações sobre o receptor:
8-'' Você está formando sua família há anos''.

9-''Você sonha, planeja, estabelece as metas e os padrões a alcançar.''

Observa-se também a função poética da linguagem, cujo elemento mais importante é a própria mensagem, manifesta neste texto por meio da foto em que se verifica mãos dispostas sobre a outra lembrando os tijolos de uma construção: uma mão masculina na base, servindo de alicerce, em seguida uma mão feminina de adulto e sobre ela uma mão masculina infantil, sobre esta, outra mão de criança, porém, feminina, sugerindo a construção de uma família. A mão das crianças por cima sugere o futuro que pesa sobre a mão mais forte, a do pai. O chefe da família, a quem a mensagem é dirigida.
O fundo azul com letreiro branco, representando as cores da Companhia Nacional, sugere, além da paz e segurança que esta última cor demonstra, a presença da Companhia ao lado da família.
Na frase:
10-''Segure suas paixões''

A expressão conativa representada pelo verbo no imperativo, vem determinar o valor afetivo e poético desta mensagem, através de sua disposição transversal, da palavra paixões e do pingo no ''i'', em forma de coração.
Por outro lado, considerando as funções da linguagem sob a teoria de DUCROT (1972) analisaremos esta publicidade por meio das leis conversacionais (L C):
Lei da informatividade, que segundo seu autor ''é a condição à qual está submetida, por definição, qualquer enunciado que tenha por objetivo informar o ouvinte.
Lei da exaustividade, que ''exige que o locutor dê, sobre o tema de que fala, as informações mais fortes que possuir, e que sejam suscetíveis de interessar o destinatário'' .
Lei do interesse que estabelece que o locutor deve dizer o que possa interessar ao ouvinte. .
Podendo acrescentar ainda a Litotes que ''leva a interpretar um enunciado como dizendo mais do que sua significação literal'' . Sendo, portanto, o resultado da ação da lei da exaustividade e convenções sociais que proíbam dizer certas coisas, ou dizer certas coisas de um modo.
Feitas estas considerações traçaremos um quadro para melhor situarmos estas observações:
QUADRO COMPARATIVOS ENTRE AS TEORIAS DE DUCROT E JACKOBSON
Enunciados Jackobson Ducrot
1 Função Conativa Lei da exaustividade
2 Função Conativa Lei do interesse
3 Função Conativa Lei da informatividade
4 Função Conativa Lei da exaustividade
5 Função Conativa Litotes
6 Função Referencial Lei da informatividade
7 Função Referencial Lei da informatividade
8 Função Referencial Lei da exaustividade
9 Função Referencial Lei da exaustividade
10 Função Conativa/
Função Poética Litotes


Tanto em uma quanto em outra teoria, podemos supor que o ponto central da mensagem procura atingir o interlocutor. Neste caso, o pai de família, responsável pela segurança e estabilidade da mesma, se encararmos a linguagem desta publicidade sob a ótica de uma formação discursiva (F D), alicerçada sob uma formação ideológica que determina como base do núcleo familiar a figura patriarcal.
A leitura deste texto, tanto na orientação de Jackobson, quanto na de Ducrot, exclui outros pontos de vista que não o da FD em que predomina o ''pater família'', aqui representado pela mão forte e masculina na base da construção do lar.
Todavia, o que nos interessa de fato na observação desse texto publicitário é mostrar o processo de construção da leitura, que, tal qual a construção de uma casa, ou como quis o ''arquiteto'' da campanha publicitária da Companhia Nacional, a construção da família, se faz de entrelaçamentos. Na engenharia, acontece a superposição de tijolos e argamassas, até se chegar ao telhado, ou cobertura. Na família, a construção, do ponto de vista de um FD patriarcal, faz-se do entrelaçamento de pessoas, tendo como base o pai, para se chegar ao futuro, representado pelas crianças. Na construção da leitura ocorre também um entrelaçamento: uma superposição de significações diversas que vão sendo construídas a partir de um alicerce.
Ler um texto, no caso específico, um texto publicitário, implica ler também o que não é ele . A relação do leitor com o universo simbólico não se dá apenas por uma via- a verbal- ele opera com todas as formas de linguagem na sua relação com o mundo , portanto, as inferências, construídas no terreno do conhecimento de mundo e partilhado, aportes teóricos da Lingüística Textual.
Fazer esta afirmação significa dizer que na construção da leitura há que se apropriar de todas as contribuições a despeito de serem desta ou daquela linha. Também numa construção se mistura líquido com sólido e o resultado é um amálgama duradouro, que sedimenta o seu alicerce.
Poderíamos elencar aqui várias outras contribuições e ainda correríamos o risco de omitir alguma. O que nos interessa de fato é salientar que toda ''leitura é produzida em condições determinadas'', que'' toda leitura tem sua história'' e que esta história é produzida num contexto sócio-cultural determinado.
O que nos leva a considerar a Análise do Discurso uma teoria altamente significativa para a construção da leitura. Poderíamos dizer que a contribuição da AD seria, neste espaço em construção, o elemento vazado, aquele que preencheria de certa forma um espaço físico, mas deixaria passar em seu entremeio outros elementos tão diversos e representativos e que estão muito além da simples composição de massa e tijolo. A AD, nesta metáfora, representaria, se não o próprio homem que habita o território construído, toda a multiplicidade de sua significação ontológica. O homem enquanto ser resultante do meio, portador, criador e multiplicador de ideologias.
Nesta perspectiva, nossa análise da construção da leitura volta-se para a importância da escolha lingüística que faz o enunciante, atentando para o fato de que ela guarda a orientação de uma formação social de determinada época, ou seja, o enunciante não está exercitando uma liberdade pessoal quando escolhe, mas atuando dentro e sobre um universo lingüístico a partir do produto da história de suas interações e das pressões sociais.
A construção da família e, por conseguinte, a responsabilidade de prover, educar e garantir os sonhos desta família, numa sociedade constituída num modelo patriarcal, é de competência do pai, neste texto representado pela mão masculina na base. Esta é uma leitura autorizada numa formação discursiva, que embora vigente numa sociedade, cuja família encontra-se em processo de ''ruína '', ainda mantém em seu discurso a noção de família nucleada em outro contexto sócio-histórico.
Dessa forma é perceptível, numa análise mais acurada, perceber que apesar, porém, do processo ideológico, a heterogeneidade cultural, enquanto gênese de diferenciados sistemas de referência que conduz à heterogeneidade discursiva, não deixa de se marcar no discurso: ela leva a que no tecido aparentemente coeso do texto se manifestem descontinuidades em forma de contradições.
As contradições nesta leitura, são marcadas não pelo tecido ou imagem da publicidade, mas extra texto. Do outro lado da construção, no ''canteiro da obra''. A sutileza do apelo conativo e visual mascara a noção atual de família e ainda que lida neste contexto, a publicidade está dirigida também a um chefe de família que não corresponde ao modelo em questão.

Considerações finais

O que nos autoriza a concluir que na construção da leitura, há que se levar em conta todos os recursos possíveis conquistados pelas diversas teorias que se somam no momento da prática docente. Assim, respaldamo-nos em Orlandi, (1988, p. 38):

'' O processo de compreensão de um texto certamente não exclui a articulação entre as várias linguagens que constituem o universo simbólico. Dito de outra maneira: o aluno traz, para a leitura, a sua experiência discursiva, que inclui sua relação com todas as formas de linguagem''.


Nosso propósito, evidentemente, não foi o de dissecar as bases teóricas da AD, ou das outras teorias citadas, em prol de um alicerce para a estruturação da prática da leitura, pois tão somente tangenciamos o assunto, todavia esperamos ter suscitado uma reflexão acerca das contribuições das diversas teorias lingüísticas para a construção da leitura. E, à guisa de conclusão, apropriaremo-nos de um recorte de um texto de Foucault (1996, p. 70):

''Em todo caso, uma coisa ao menos deve ser sublinhada: a análise do discurso, assim entendida, não desvenda a universalidade de um sentido, ela mostra à luz do dia o jogo da rarefação imposta, com um poder fundamental de afirmação. Rarefação e afirmação, rarefação, enfim, da afirmação e não da generosidade contínua do sentido, e não da monarquia do significante.''


Referências Bibliográficas


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BARROS, J. Encontros de redação. São Paulo: Moderna 1985.

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DELL'ISOLA, R.L.P. Leitura: inferências e contexto sócio-cultural. Belo Horizonte: Universitária, 1991.

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FOUCAMBERT, J. A leitura em Questão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.

ILARI, R. A Lingüística e o Ensino de Língua Portuguesa São Paulo: Martins Fontes,1993.

JACKOBSON, R. "Lingüística e Comunicação". São Paulo: Ática, 1985.

KLEIMAN, A . Leitura- Ensino e Pesquisa, São Paulo: Pontes, 1989.

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MOLINA, O. Ler para aprender: desenvolvimento das habilidades de estudo. São Paulo: EPU, 1992.

ORLANDI, E. P. Discurso e Leitura. São Paulo: Cortez//Editora da UNICAMP, 1988.

POSSENTI, S. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: Mercado de Letras, 1997.

RIBEIRO, O. M. O ensino de gramática na escola: suas relações com o signo lingüístico e com a articulação do pensamento na língua, Dissertação de Mestrado, Uberlândia: UFU, 1999.

RIBEIRO, Ormezinda Maria. Ensinar ou não a gramática na escola: eis a questão. In: Linguagem & ensino, v. 4 nº 1, p. 141-157, 2001.

SILVA, E. T. Elementos de pedagogia da leitura. São Paulo: Martins Fontes,1988.

Publicado originalmente em:
RIBEIRO, O. M. . Por uma engenharia da leitura: construindo trajetórias para a leiturização.. Linguagem & ensino, Pelotas RS, v. 06, n. 02, p. 107-148, 2003

sábado, 19 de julho de 2008

Quando eu voltar a ser criança.


KORCZAK, Janusz. Quando Eu Voltar a Ser Criança. 9 ed. (Tradução de Yan Michalski).São Paulo: Summus Editorial, 1981. 155 páginas. Preço: R$ 25,20.

Eis um livro raro, tocante, sensível, comovente. Um livro belo e terno, escrito com sensibilidade singular por Janusz Korczac, nome com que se tornou conhecido internacionalmente o médico pediatra e educador judeu Henryk Goldszmit e que viveu entre 1878 e 1942. De uma fidelidade total à causa da criança, foi morto pelas forças nazistas, quando acompanhando um grupo de duzentos órfãos a seu cuidado, retirados do gueto de Varsóvia até o campo de concentração de Treblinka, para serem mortos nas câmaras de gás, recusou-se a salvar sua própria vida.
“Quando eu voltar a ser criança” já em sua nona edição brasileira, é uma obra prima, desse educador, escritor e médico-pediatra, cuja vida dedicou às crianças, consideradas por ele como pessoas com tanto direito ao respeito quanto os adultos.
Janusz Korczak escreve com a alma dos que entendem a psicologia infantil sem discursar sobre a criança, mas se faz porta-voz dela, voltando a ser criança e revivendo um mundo por meio dos olhos, sensações, tristezas e desencantos que toda criança vive. Um livro envolvente e sábio, que aponta as dificuldades de ser criança neste mundo feito, pensado e mandado pelos adultos.
Esse não é um livro pedagógico, no sentido estrito, mas um romance de ficção. À guisa de categorização, pode ser enquadrado no gênero relações humana, mas vai além dessa classificação, pois incorpora toda a dimensão pedagógica sem o didatismo das obras com esse fim.
O programa pedagógico de Korczak, baseado na tese de que as crianças devem ser plenamente compreendidas em seu próprio mundo mental é transmitido nas páginas dessa ficção, que traduz em seu enredo a concepção de que a vontade das crianças deve valer tanto quanto a dos educadores.
Voltando a ser criança, esse educador é capaz de compreender o universo infantil e escrevendo como quem de fato encarna a alma e a condição infantil, Janusz Korczak, médico por formação e educador por escolha, traduziu em literatura o seu desejo de melhorar a realidade à sua volta. Esse livro alia uma grande empatia com as crianças e uma preocupação constante com todos os problemas sociais ao ato criativo de uma narrativa sensível que reflete domínio da arte de escrever e pleno conhecimento da psicologia infantil.
"Sem uma infância serena e completa, toda vida posterior fica mutilada." A idéia expressa nessas palavras escritas por Korczak condiz com seu princípio fundamental de que o educador deveria sempre levar a sério a opinião do educando, seu ponto de vista, porque não considerá-los oprimiria a personalidade da criança e seu amor próprio. De acordo com Korczak, em vez de mandar na criança, é preciso dar-lhe a oportunidade de se convencer, com base em suas próprias experiências, em uma atmosfera de confiança.
O trabalho de Korczak que se tornou parâmetro de educação nos meios internacionais e é ainda pouco conhecido no Brasil, mas pode ser reconhecido pelos educadores, pois constitui-se na base adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) para a formulação da Declaração dos Direitos da Criança, por seu legado ”O Direito da Criança ao Respeito”, um de seus 24 livros.
Ler essa obra prima de um escritor/educador que soube exprimir com sabedoria e maestria o que se sabe inconscientemente, mas não se manifesta, é talvez uma das experiências mais ricas que se pode acrescentar àqueles que lidam com a educação infantil, ou convivem com crianças. Não é um livro para ser lido simplesmente, mas para ser sentido e introjetado, como o próprio exercício do narrador/autor.

Publicado em:

RIBEIRO, O. M. . KORCZAK, J. Quando eu voltar a ser criança.. Revista Athos & Ethos, Patrocínio, v. 03, p. 203-204, 2003.

As palavras e a justiça. Considerações sobre a polissemia a partir de uma notícia de jornal



RESUMO

Esse artigo faz algumas considerações sobre a polissemia das palavras, a partir de uma notícia de jornal, procurando mostrar que mostrar que a questão lingüística, nesse exemplo considerado, imbricada à questão dos direitos constitucionais, é muito mais uma questão de embate discursivo do que propriamente uma questão jurídica. Para tal, recorre à ciência Lingüística tomando-lhe as definições de signo.


A palavra não é luminosa estrela
Sequer desarticulada ilha de afinidades
Estopim aceso, sim, águas de inquietação,
A palavra não é jogo de dados.

Jogo de dúvidas, sim, de dádivas.
Dados envenenados de selvagem silêncio.

Por um fio a palavra é prata.
Por um fio a palavra é pata de cavalo
por um fio, ato de injustiça.

(Lindolf Bell)

1-PRECONCEITO RACIAL, OU PRECONCEITO LINGUÍSTICO?

Uma notícia veiculada há algum em um jornal despertou-nos a atenção: um vereador prestou queixas à polícia alegando preconceito contra a raça negra, motivado por um ''out door'' que trazia o seguinte texto:

''Se você não deseja um futuro negro para seu negócio (...)”

O que nos chamou a atenção não foi o zelo do vereador em defender uma nobre causa, mas o fato de, daí, podermos constatar que há muito o que se aprender sobre a tão complexa linguagem dos homens. A língua portuguesa, ou qualquer outra língua não é tão somente um amontoado de palavras, cujos significados jazem em um dicionário que podem ser ''vetados '' ou ''autorizados'' por uma lei. A linguagem está impregnada de fatores ideológicos que não se resolvem com um simples boletim de ocorrência. Tira-se a palavra, mas não o preconceito.
Para organizar melhor essas considerações começarei indagando: o que diz o enunciado conotativo sobre a realidade? E na esteira de Paul Ricoeur ( 2000, p. 331) em seu texto de introdução ao estudo VII faço as mesmas considerações a fim de atravessar o limiar do sentido para a referência do discurso. Conforme Ricoeur (2000, p. 331-332), a questão da referência pode ser posta nos nível da semântica, quando concerne às entidades do discurso da ordem da frase. E no nível da hermenêutica, quando se dirige a entidades de maior dimensão que a frase. É nesse nível que o problema toma toda sua extensão.
Há que se estabelecer, portanto, essa distinção, para que o simples uso de um termo da língua não seja motivo de representações e desencadeie uma ação judicial, quando o que há de fato é um desconhecimento lingüístico no nível semântico e um jogo de interesses no plano discursivo. E isso vale tanto para os publicitários, quanto para os defensores da “minoria ofendida”.
O desígnio do discurso é irredutível, ao que se chama em semiótica, ao significado, que é apenas a contrapartida do significante de um, signo no interior do código da língua. O desígnio do discurso visa a um real extralingüístico que é seu referente. Assim, considera Ricouer (2000, p. 32), enquanto o signo somente reenvia a outros signos na imanência de um sistema, o discurso está sujeito às coisas. O discurso se refere ao mundo. Se não nos ocuparmos da relação do signo com as coisas denotadas, nem da relação entre a língua e o mundo, estaremos o tempo todo ferindo a Constituição, entrando com uma representação contra alguém, e acumulando mais ainda o Judiciário com processos dessa natureza.
Esse ensaio intenciona mostrar que a questão lingüística, nesse exemplo considerado, imbricada à questão dos direitos constitucionais, é muito mais uma questão de embate discursivo do que propriamente uma questão jurídica.

2-UMA QUESTÃO LINGÜÍSTICA

Saussure (1929), através do “Cours de Linguistique Genèràle-CLG” sistematizou a concepção do signo lingüístico como uma entidade arbitrária e convencional, o que fundamentou alguns dos princípios da Lingüística moderna. Com ele concordaram vários outros estudiosos, total ou parcialmente, dando continuidade ao seu pensamento ou refutando em parte esta afirmação. Todavia, a idéia da arbitrariedade do signo, não é uma criação de Saussure. A título de exemplo podemos mencionar que filósofos como Locke, na Inglaterra, em Ensaios acerca do Entendimento, procurando refletir sobre o que significa pensar e contemporaneamente na Alemanha, Leibniz em Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano, trataram, em meados do séc. XVII, da questão da arbitrariedade do signo, muito embora o termo técnico “signo” tal como entendido pela Lingüística atual, ainda não fosse usual naquela época.
O filósofo alemão, em capítulo dedicado às palavras, afirma que elas têm sua origem na necessidade humana de viver em sociedade, tendo o homem desenvolvido, portanto, a faculdade de falar, que se constitui no grande instrumento e o laço que une esta sociedade, outorgando-lhe a função de representar , ou até mesmo, explicar as idéias. Segundo este pensador, as pessoas freqüentemente ligam os seus pensamentos mais às palavras do que às coisas e como pretendem assinalar as suas próprias idéias, atribuem às palavras uma relação secreta com as idéias de outrem e com as próprias coisas. No entanto, as palavras em sua maioria, são apreendidas antes das idéias que elas significam.
O pensador Inglês, corroborando as idéias de Leibniz, afirma que as palavras, na sua imediata significação, são sinais das idéias de quem as emprega. Para Locke, as palavras nada significam, senão as idéias na mente de quem as usa, ainda que estas idéias sejam apreendidas das coisas que elas supostamente representam.
O homem, tendo dentro de si uma infinidade de pensamentos que não podem se manifestar por si mesmo, vê, na perspectiva de viver em sociedade, a necessidade de desvendar certos sinais sensíveis externos, por meio dos quais, as idéias invisíveis das quais seus pensamentos são formados, pudessem ser conhecidas dos outros.
Tanto Locke, quando Leibniz consideram que não há qualquer conexão natural entre os sons articulados e certas idéias, pois assim, haveria apenas uma linguagem entre os homens, e afirmam que a palavra é designada arbitrariamente como a marca de uma idéia, em que entra o elemento escolha. O uso comum, por um tácito acordo, atribui certos sons a certas idéias em todas as línguas, supondo que as palavras significam também a realidade das coisas. Isto ocorre pelo fato de que devido ao uso, as palavras motivam as idéias, pois a conexão entre o som e o que eles significam estimula certas idéias como se fossem os próprios objetos ao impressionarem os sentidos.
Poderíamos assim, afirmar que, ao manifestarem seus pensamentos, as pessoas se utilizam um código lingüístico, cujo sistema é formado por signos.
O signo pode ser definido a princípio como sendo aquilo que está no lugar de outra coisa, ou seja, uma coisa que representa outra. Eco (s/d).
Saussure (1972, p. 80), chamou de signo a combinação do conceito e da imagem acústica, entendendo conceito como significado e imagem acústica como significante. E estabelece que o elo que une o significante ao significado é arbitrário, assim como a relação do signo com a “coisa” extra-lingüística, também o é. Por arbitrário, o autor entende que o signo é imotivado, ou seja arbitrário em relação ao referente com o qual não tem nenhuma ligação natural na realidade. Para ele, essa entidade lingüística só existe pela associação do significante ao significado. E uma seqüência de sons só é lingüística quando é suporte de uma idéia.
O conteúdo psíquico (pensamento) só recebe forma quando é enunciado, como afirma Benveniste (1995, p. 69, p.) e somente assim. Para tornar-se transmissível esse conteúdo deve ser distribuído entre morfemas de certas classes que por sua vez se organizam em certa ordem, ou seja, deve passar pela língua para conformar-se. De outra maneira não teríamos como apreendê-lo como conteúdo, pois se reduz a nada, ou a algo tão vago, cuja sutileza tornaria-se absolutamente indelével. Portanto, a forma lingüística não só é a condição de transmissibilidade do pensamento, mas a condição de sua realização.
Benveniste (1995, p.69) admitindo que o pensamento não pode ser captado a não ser formado e atualizado na língua, questiona o fato de não haver meios de reconhecer no pensamento caracteres que lhe sejam próprios e não dependam da expressão lingüística.
Tanto filósofos quanto lingüistas concordam que o pensamento tomado em si mesmo é uma massa amorfa e indistinta como uma nebulosa em que nada é delimitado e não pode ser captado a não ser formado e atualizado na língua.
A língua é para Saussure (1972, p. 131) comparável a uma folha de papel, em que o pensamento é a face e a imagem acústica é o verso. Não há como isolar a imagem acústica do pensamento, nem o pensamento da imagem acústica, da mesma forma que não se pode recortar a face de um papel sem recortar ao mesmo tempo o seu verso.
Assim, ao manifestar seus pensamentos, as pessoas utilizam um código lingüístico, cujo sistema é formado por signos, sem os quais seria impossível distinguir duas idéias de maneira clara e constante.
O papel do signo lingüístico é, pois, o de representar, tomando o lugar de outra coisa, evocando-a como substituto, como afirma Benveniste (1989, p. 51).
Como a relação recíproca entre língua e pensamento afeta diretamente o conceito de signo lingüístico, é importante concentrar nossas atenções nas definições já propostas por alguns estudiosos.
Eco (s/d) chamou de signo aquilo que está no lugar de outra coisa. Quando se diz que “algo” está por “outra coisa”, não se quer dizer que o signo equivale a esse “algo.” Uma palavra é um signo porque designa algo que não é ela, mas é representado por ela. Ao emitirmos signos pensamos indicar coisas. Se entendermos o signo como alguma coisa que está em lugar de outra, ou por outra, estamos classificando-o como elemento no processo de significação.
Assim, o signo “boi” cujo significante é [ boi ] e significado (para os que possuem o código português): animal mamífero, quadrúpede, ruminante etc..; tem o referente ou o terceiro termo o boi presente ou todos os bois que já existiram, existentes e que existirão no mundo; sua referência é a relação entre o significante e o referente, ou seja, entre o signo e a realidade ou o mundo.
Saussure (1972, p. 81) chamou de signo a combinação do conceito e da imagem acústica. A partir do “C L G ”, conceito passou a ser denominado significado e imagem acústica significante. O signo lingüístico, portanto, é uma entidade dupla, cujo elo que une seus dois termos, ambos psíquicos, é arbitrário, assim como a relação do signo com a coisa extra- lingüística também o é.
Com Saussure, o signo foi instaurado como unidade de língua e passa a ser a unidade mínima da frase. Para ele, o signo lingüístico une não uma coisa a um nome, mas um conceito a uma imagem acústica. A imagem acústica não é o som material, mas a impressão psíquica deste som. Ela é a representação natural da palavra enquanto fato de língua virtual, fora de toda a realização da fala.
Saussure entende que o signo é arbitrário, ou seja, o significante é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significado com o qual não tem nenhum laço natural na realidade.
Para Benveniste (1995, p. 57) o arbitrário só existe em relação com o fenômeno ou o objeto material e não intervém na constituição própria do signo.
Embora tenha postulado que o signo lingüístico é, em sua origem, arbitrário, Saussure (1972, p. 152) reconhece a possibilidade da existência de certos graus de motivação entre o significante e o significado, quando propõe a existência de um “arbitrário absoluto” e de um “arbitrário relativo”. Ele cita como exemplo os números “dez” e “nove”, que tomados individualmente apresentam uma relação totalmente arbitrária entre o significante e o significado, no entanto, a combinação de “dez” com “nove” forma um terceiro signo, a dezena” dezenove”. Para Saussure, a arbitrariedade absoluta original dos dois numerais é atenuada e dá lugar à arbitrariedade relativa, pois pode-se chegar à significação do todo “dezenove” com o conhecimento das partes “dez” e “nove.”
O mesmo acontece com a formação dos grupos de palavras derivadas como “bananeira/amoreira” e “sapateiro/pedreiro”. Enquanto as palavras primitivas: “banana”, “amora”, “sapato,” e “pedra” serviriam como exemplos de arbitrário absoluto (signos imotivados),”bananeira”, “amoreira”, “sapateiro” e “pedreiro”, sendo formas derivadas, seriam casos de arbitrário relativo(signos motivados), devido à relação sintagmática de “banana/amora”(morfemas lexicais) mais “eira” (morfema sufixal); “sapato/pedra”(morfemas lexicais) mais “eiro”(morfema sufixal) e à relação paradigmática estabelecida a partir da associação de “bananeira”, “amoreira”,”mangueira”, “oliveira”, “parreira” etc.; “sapateiro”, “pedreiro”, “carteiro”, “padeiro,” “leiteiro” etc., dado que é conhecida a significação dos elementos formadores.
Por essa razão Saussure (1972, p. 154) classifica as línguas em lexicológicas e gramaticais. Segundo o mestre genebrino, as línguas lexicológicas são formadas por uma maioria de signos imotivados como é o caso do inglês e do chinês. Aquelas em que predominam os signos mais ou menos motivados , ou seja as palavras são formadas geralmente pelo relacionamento morfo-sintático entre os seus constituintes imediatos, são chamadas por ele de línguas gramaticais, dentre as quais ele cita o sânscrito, o latim e o alemão.

2.1. NA LÍNGUA O QUE EXISTE SÃO VALORES

Um outro fenômeno decorrente das convenções estabelecidas pela sociedade é aquele em que o mesmo significante pode exprimir significados ou sentidos diferentes, dependendo do contexto em que foi usado.
Veja por exemplo alguns dos significados da palavra negro: (1) de cor escura; (2) sombrio (3) lúgubre; (4) funesto; (5) maldito; (6) homem de raça negra; (7) escravo, etc...
Há que se considerar aqui a noção de valor. Só a coletividade pode estabelecer os valores, cuja única razão de ser está no uso e no consenso geral. Esses valores são inteiramente relativos, razão pela qual o vínculo entre a idéia e o som é totalmente arbitrário. E é esta arbitrariedade do signo que nos faz compreender que só o fato social pode criar um sistema lingüístico.
Um dos aspectos do valor lingüístico é a propriedade que tem o signo de representar uma idéia, e tomado em seu aspecto conceitual, constitui um elemento da significação. No entanto, valor não é tão somente significação.
Para demonstrar a noção de valor e estabelecer a diferença entre valor e significação, Saussure (1972, p.137) apresentou a analogia com o valor da moeda de cinco francos: para determinar quanto vale é necessário saber se pode trocá-la por uma quantidade determinada de algo diferente como pão, por exemplo, que se pode compará-la com um valor semelhante do mesmo sistema como a moeda de um franco, ou de outro sistema como o dólar.
De igual modo é a palavra, que pode ser trocada por algo diferente dela: uma idéia; e pode ser comparada com algo da mesma natureza: uma outra palavra.
O valor de uma palavra só pode ser fixado se pudermos trocá-la por este ou aquele conceito, ou seja, por algo que tem esta ou aquela significação e ainda compará-la com os valores semelhantes, com as palavras que se lhe podem opor. O conteúdo de uma palavra só pode ser determinado pelo concurso do que está fora dela, pois se faz parte de um sistema, está revestida não só de uma significação como de um valor.
O valor, portanto, só pode ser determinado negativamente. Uma palavra só é o que é porque as outras não o são . Não há absoluto e anterior. É o papel, a função, que determinam e estabelecem o valor.
A língua é constituída por um conjunto de diferenças fônicas e conceptuais , que são ora associativas, ora sintagmáticas. É esse conjunto de relações usuais que constitui e preside o seu funcionamento.
Há que se verificar a série de agrupamentos possíveis, quer no plano sintagmático, quer no plano paradigmático para se estabelecer o valor, pois a relação da língua com a linguagem direcionada pela arbitrariedade faz com que nossa mente opere no tempo a capacidade de coordenar e associar no aspecto semântico, fonológico, sintático, morfológico.
Nossa mente executa a operação que consiste em eliminar mentalmente tudo que não leva à diferenciação requerida, no ponto requerido, fazendo os agrupamentos necessários a esse processo de determinar o valor. Observando as seqüências:
1-Ala 7-Bala
2-Cala 8-Dala
3-Fala 9-Gala
4-Mala 10-Pala
5-Rala 11-Sala
6-Tala 12-Vala
Verificamos que a simples troca de um elemento fonológico introduz uma mudança significativa de significado. Nossa memória se encarrega de reservar todos os tipos de sintagmas mais ou menos complexos de qualquer espécie ou extensão que possam ser, e, no momento de empregá-las, fazemos intervir os grupos associativos para fixar nossa escolha. (Cf. SAUSSURE 1972, p. 151)
O verbo “to be” em Inglês , se comparados aos nossos verbos “ser ” e “estar” em Português pode exemplificar a noção de valor dentro da analogia proposta por Saussure (1972, p.137).
Se considerarmos o que significa a expressão em Inglês: “The cat is black” e compará-la com o sua equivalente em Português “O gato é preto” ou “O gato está preto” Em Português há uma substancial diferença entre “ser” e “estar”. “Ser” é inerente ao sujeito é estado permanente, enquanto “estar” é condição transitória. Em “O gato é preto,” tem-se uma condição permanente, ao passo que em “O gato está preto” , tem-se uma condição momentânea, transitória, que bem pode mudar de estado de um momento a outro.
Se para nós, falantes da língua portuguesa, o emprego de ser ou estar representa o emprego de valores diferentes, posto que ser não é estar e vice-versa, para os usuários da língua inglesa, esta distinção não é relevante.
A tradução de palavras de uma língua para outra pode certamente, explicar a noção de valor.
A palavra inglesa “cheese”, a palavra francesa “fromage” equivalentes em Português à palavra “queijo ”, podem ter a mesma significação, porém, não o mesmo valor.
Quando um inglês usa “cheese”, ele se refere a algo leitoso e cremoso, quase sem gosto, ou a algo duro e forte que se pode comer sem outra coisa. O francês quando diz “fromage” pensa em queijos diferentes, dependendo da região onde mora, da hora do dia em que vai comer e associa sempre a um tipo específico de pão e vinho. Na França, a palavra “fromage” designa de modo geral, centenas de tipos de queijo. Ao passo que para um brasileiro falar em “queijo” é associá-lo com doce de leite , goiabada, pão com manteiga e o café com leite. Coisas absolutamente inassociáveis para os franceses e os ingleses .
Portanto, dizer “queijo” não é dizer “fromage” ou “cheese”; dizer “fromage” não é dizer “queijo” ou “cheese”; dizer “cheese” não é dizer “queijo, nem ” “fromage.”Aqui se percebe claramente a noção de valor quando no campo semântico se nota que uma palavra é o que a outra não é . Verifica-se aqui, também que o momento da criação de um signo (queijo, cheese, fromage) é arbitrário e convencional naquela língua (queijo é queijo, não é fromage, nem cheese).
Concorre também esse exemplo, para mostrar que uma língua é algo social e nasce por determinação histórica, ditada por condições específicas de uma sociedade e de uma cultura.
A arbitrariedade do signo é a origem do caráter opositivo das entidades denominadas significantes e significados, que só são o que são ,porque são delimitadas por outras entidades que com elas coexistem. Nas oposições se estabelecem e se delimitam os valores.
Outro princípio que rege o signo lingüístico é o da linearidade. Os signos lingüísticos só podem ser codificados em uma sucessão linear de situações em razão de seu significante ser de natureza auditiva, pois assim sendo, seus elementos se apresentam um após outro, dispondo apenas da linha do tempo.
A linearidade pode, então ser definida como a capacidade do signo lingüístico de se desenvolver no tempo. Sendo assim, toma do tempo algumas de suas características: é uma extensão. Apresentando-se obrigatoriamente um após o outro , os signos formam uma cadeia que pode ser mensurável numa só dimensão. A linearidade é a origem do caráter sintagmático das entidades lingüísticas: elas se desenvolvem ao longo de um eixo sucessivo, podendo se decompor em segmentos de menor extensão. Todo o mecanismo da língua depende dessa característica. (Cf .SAUSSURE 1972, p. 158).
A língua provém do cruzamento desses dois princípios. De um lado a arbitrariedade como origem do caráter opositivo das entidades denominadas significantes e significados e de outro a linearidade como origem do caráter sintagmático das entidades. Todo o mecanismo da língua se baseia nesses dois tipos de relações. As relações baseadas no caráter linear da língua, cujos termos se alinham um após outro na cadeia da fala e se apóiam na extensão, são sintagmáticas; aquelas que se baseiam em associações, reportando-se à memória do falante e fazem surgir no espírito deste uma série de outras palavras que, de certa forma guardam um laço de afinidade são paradigmáticas.
De acordo com Saussure (1972, p. 85) o signo lingüístico tem ainda a característica de ser ao mesmo tempo mutável e imutável.
Imutabilidade é a condição do signo de não poder ser substituído por outro e refere-se ao caráter relativo da arbitrariedade, pois um signo é arbitrário unicamente em razão da relação significante/significado, mas acarreta uma herança comunicacional que resiste a qualquer tentativa de substituição. Se em relação à idéia que representa, o significante, graças à arbitrariedade, pode ser livremente escolhido, em relação à comunidade lingüística que o emprega, ele não é livre, é imposto.
Alguns fatores contribuem para isto: a própria arbitrariedade do signo põe a língua ao abrigo de toda tentativa que vise a modificá-la; o grande número de signos que constitui uma língua representa uma dificuldade na substituição e também o caráter complexo do sistema que é constituído pela língua.
A complexidade de tal sistema só pode ser compreendida pela reflexão e a massa não pode transformá-la sem a intervenção de especialistas. No entanto, até hoje estas intervenções jamais lograram êxito; a resistência da inércia coletiva a toda renovação lingüística é outro fator que condiciona a imutabilidade do signo lingüístico. A língua é produto de forças sociais que atuam em função do tempo, e forma um todo com a vida da massa social e esta, por sua vez, sendo inerte se apresenta como um fator de conservação. (Cf RIBEIRO, 1999).
Não se pode desvincular a força da coletividade da ação do tempo que atua na língua, são ambos os fatos que dão a ela o caráter de fixidez. Nossa liberdade de escolha do signo lingüístico está limitada pela solidariedade com o passado. Tal como exemplificou Saussure (1972, p. 88): dizemos ''negro'' e ''branco'', porque antes de nós se disse ''negro'' e ''branco''.
Assim, a convenção arbitrária faz com que a escolha seja livre e o tempo fixa essa escolha. Nas palavras de Saussure (1972, p. 88) :“(...)porque o signo é arbitrário, não conhece outra lei senão a da tradição e é por basear-se na tradição que pode ser arbitrário.”
Mutabilidade é uma outra característica do signo lingüístico. É a condição que tem o signo de ser alterado. O mesmo tempo que faz com que a língua continue, faz com que ela se altere mais ou menos rapidamente. Esta afirmação pode nos parecer contraditória, no entanto, a oposição entre os dois termos marcantes, mutabilidade e imutabilidade atribuídas ao signo lingüístico e à ação do tempo na língua, não constitui um paradoxo. Esta oposição marca uma verdade que não se pode negar: a língua se transforma sem que os indivíduos possam transformá-la.
O princípio da alteração se baseia no princípio da continuidade. O signo só pode ser alterado porque continua. Essa alteração leva sempre a um deslocamento da relação entre o significado e o significante e é a arbitrariedade do signo que faz com que a língua seja incapaz de se defender dos fatores que promovem esse deslocamento.(Cf RIBEIRO, 1999).
É importante considerar que se a língua não está limitada por nada na escolha de seus meios e nada nos impede de associar uma idéia qualquer com uma seqüência sonora qualquer, temos, então, que o signo lingüístico não é puramente a tradução de um pensamento já constituído, mas a sua própria condição de realização.


2.2. TODO SENTIDO É IDEOLÓGICO


Com uma visão diferente de Saussure, Bakhtin (1981, p. 31) concebeu o signo como uma entidade necessariamente ideológica. Para este autor, há uma transferência em nossas mentes dos elementos significativos isoláveis de uma enunciação. A cada enunciação de outrem que estamos no processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas. A significação, segundo seu ponto de vista, pertence a uma palavra enquanto traço de união entre os interlocutores, ou seja, ela só se realiza no processo da compreensão em que há ação e interação. Sob este prisma, o signo, ideológico, se realiza, então, na dialogia. Há que se compreender que cada palavra emitida “é determinada tanto pelo fato de que precede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém”. (Cf. BAKHTIN 1981, p.113)
A significação é efeito da interação do locutor e do receptor, produzido através do material de um determinado complexo sonoro, conforme ressalta Bakhtin (1981,p. 132): “É como uma faísca elétrica que só se produz quando há contato de dois pólos opostos ”
Sem signo não existe ideologia. Tudo que é ideológico possui um significado (um valor semiótico) e remete a algo situado fora de si mesmo. A ideologia só existe pelo signo, que por sua vez pode distorcer a realidade, ser-lhe fiel ou apreendê-la de um ponto de vista específico.
A palavra é o signo ideológico por excelência e toda a sua realidade é absorvida por sua função de signo. No entanto, existem outras manifestações do pensamento ideológico que se integram ao discurso e não têm existências próprias se totalmente isoladas dele. Todavia, nenhum signo ideológico específico é inteiramente substituível por palavras. (Cf. RIBEIRO, 1999).
O signo cruz, por exemplo, reflete e refrata outra realidade que não é a cruz, como valor intrínseco a si mesmo, mas o cristianismo e toda a carga ideológica nele contida.
O signo para Bakhtin é revestido de tema e significação.Tema é o sentido da enunciação completa, é individual e não reiterável: cada enunciação tem um único sentido. O tema de uma enunciação é determinado tanto pelas formas lingüísticas que entram na composição (as palavras, os sons, a entoação etc.) como pelos elementos não-verbais. Só possui um tema, a enunciação tomada em toda a sua amplitude concreta, como fenômeno histórico.
Significação representa para Bakhtin (1995, p.36) os elementos da enunciação que são reiteráveis e idênticos, cada vez que são repetidos. É um aparato técnico para a realização de um tema. É um potencial, uma possibilidade de significar no interior de um tema concreto. A multiplicidade das significações é o índice que faz de uma palavra uma palavra.
Para entendermos o signo ideológico de Bakhtin é necessário estabelecer que a relação entre o significado (pensamento ou referência) e o símbolo (palavra) não é unívoca; o significado é um campo semântico que se constitui de uma base determinada (significação) e de um espaço de indeterminação. Para Bakhtin (1995) investigar uma palavra com base em sua significação somente é o mesmo que considerá-la no sistema da língua, ou seja, investigar uma palavra dicionarizada.
O contexto é outro elemento que entra na constituição do signo ideológico. Embora Benveniste não considere o signo como sendo necessariamente ideológico, é em sua tese sobre a significação que vamos buscar respaldo para teorias do tipo da de Bakhtin. (Cf. BENVENISTE 1989, p. 229).
Para esse lingüista é o funcionamento semântico da língua que permite a integração da sociedade e sua adequação ao mundo e , conseqüentemente a normatização do pensamento e o desenvolvimento da consciência. É neste prisma que vamos considerar o contexto, que faz com que o signo signifique de uma maneira determinada. É a noção de semântica, assim como a entende Benveniste (1989, p. 229), que nos introduz no domínio da língua em emprego e em ação. É a atualização lingüística do pensamento.
Um outro elemento indispensável na concepção do signo ideológico por Bakhtin é a dialogia. Para ele é o efeito da interação entre o locutor e o receptor produzida através de material de um determinado complexo sonoro, ou seja, a significação não existe sem a interlocução, pois ela pertence a uma palavra enquanto traço de união entre os interlocutores.
Há ainda que se observar outro item: a apreciação. Apenas os elementos abstratos considerados no sistema da língua se apresentam destituídos de qualquer valor apreciativo. Na estrutura da enunciação há que se considerar um acento de valor apreciativo, a entonação, por exemplo. A apreciação é um fenômeno social e não uma relação individual entre o locutor e o objeto de seu discurso. Deve ser levada em conta para se compreender a evolução histórica do tema e das significações que a compõem.
O deslocamento do significante e significado pode ser explicado pela força da apreciação. A evolução semântica de uma língua é sempre ligada à evolução do horizonte apreciativo de um grupo social.
Assim, a palavra “comunistas”, num dado contexto social no Brasil, deslocou sua relação de significação, graças ao valor apreciativo de um grupo. A palavra que se referia a um grupo de pessoas centralizadoras que detinha o poder de vida ou morte sobre um grupo maior, que impedia o lucro e a religião, cerceava a liberdade individual em nome do coletivo, pela apreciação cria um novo campo de significação, dentro de um contexto histórico, passando a se referir hoje à pessoas que adotam uma filosofia de vida, cujo fundamento metafísico é o materialismo dialético, diferente do materialismo vulgar. A significação se descobre na antiga e através dela, mas com ela entra em contradição e a reconstrói.
É o que afirma Bakhtin (1995, p. 136): “A significação , elemento abstrato igual a si mesmo é absorvida pelo tema, e dilacerada por suas contradições vivas, para retornar enfim sob a forma de uma nova significação com uma estabilidade e uma identidade igualmente provisórias.”


2.3. AS MÚLTIPLAS FACES DA LINGUAGEM


A língua, em virtude de sua própria estrutura, apresenta-se como um instrumento de comunicação que é e deve ser comum a todos os membros da sociedade, porque está investida de propriedades semânticas e porque funciona como uma máquina de produzir sentido. A língua permite a produção indefinida de mensagens em variedades ilimitadas, cuja propriedade única deve-se à sua estrutura composta de signos, de unidades de sentido, numerosas, mas finitas que entram em combinação ao serem regidas por um código e que permitem um número cada vez maior de mensagens, já que o efetivo dos signos aumenta sempre e as possibilidades de utilização e combinação desses signos aumentam conseqüentemente.
Todavia, há que se considerar que as palavras não têm realidade fora da produção lingüística, pois elas existem nas situações nas quais são usadas, daí a importância do contexto para a construção do sentido.
De acordo com Benveniste (1989, p.232) a polissemia é a soma institucionalizada de valores contextuais, sempre instantâneos, aptos a se enriquecer e a desaparecer, ou seja, sem valor constante, sem permanência, mas sempre em resposta às necessidades imediatas de comunicação de uma sociedade.
Cabe aqui uma outra consideração: de que cada um fala a partir de si. Para cada falante o falar emana dele e retorna a ele, cada um se determina como sujeito com respeito ao(s) outro(s). A língua fornece ao falante a estrutura formal de base, que permite o exercício da fala. Fornece o instrumento lingüístico que assegura o duplo funcionamento subjetivo e referencial do discurso: é a distinção indispensável entre o eu e o não-eu apresentada na língua pelos pronomes.
A inclusão do falante em seu discurso, a consideração pragmática que coloca a pessoa na sociedade enquanto participante e que desdobra uma rede complexa de relações espaço- temporais determinam os modos de enunciação.
O conhecimento de mundo é determinado pela expressão que ele recebe e a linguagem, enquanto reprodutora deste mundo, o submete à sua própria organização. É a inteligência que possibilita ao indivíduo colher, recolher e reunir os dados oferecidos pela percepção, imaginação, memória e linguagem, formando redes de significações com as quais organiza e ordena o mundo, recebendo e dando um sentido a ele e fazendo-se conhecer através do recurso dos signos da língua, com os quais o indivíduo promove o agenciamento sintagmático. (CF. RIBEIRO, 2000).
O jurista Warat (1995, p.37) em sua obra “O Direito e sua Linguagem” apresenta a corrente lingüístico-epistemológica conhecida como Positivismo Lógico, mostrando como os positivistas lógicos estabelecem uma estreita relação entre conhecimento e linguagem e destaca que é a linguagem que permite o intercâmbio de informações e de conhecimentos humanos, funcionando também como meio de controle de tais conhecimentos. De acordo com esta corrente, o conhecimento pode ser obscurecido por situações de natureza estritamente lingüística, o que significa dizer que uma linguagem defeituosa pode distorcer nossa compreensão das coisas.
Os chamados mal-entendidos, ou problemas de comunicação, surgem, geralmente, nas interações verbais do dia-a-dia, nas quais a diversidade lingüística atua como um recurso comunicativo de forma a permitir que os interlocutores se baseiem em conhecimentos e paradigmas relativos às diferentes maneiras de articulação da língua para categorizar eventos, inferir intenções e antever situações que poderão ocorrer. Se, de acordo com Gofman (1974), uma elocução pode ser entendida de diferentes modos, as pessoas podem interpretar uma determinada elocução com base em suas definições ou percepções do que está acontecendo no momento da interação, num dado contexto histórico-social. (Cf. RIBEIRO, 2001)

3. PARA CONCLUIR: UMA QUESTÃO DE POLÍCIA, OU DE LINGUAGEM?
Ancorados nesses estudos da linguagem, podemos então considerar que o sentido de uma palavra não existe em si mesmo, mas é determinado pelas condições em que é produzida em um processo social-histórico limitado pelas posições ideológicas.
Há uma relação entre linguagem e exterioridade que é constitutiva, posto que o processo de significação é histórico. Também é significativa a seleção que o sujeito faz entre o que diz e o que não diz.
A sedimentação de processos de significação se faz historicamente, produzindo a institucionalização do sentido dominante, cujo produto é observado na história da língua e cuja história dos sentidos cristalizados é a história do jogo de poder na linguagem.
Neste caso em questão, levantado por um representante do povo em defesa de uma minoria, que se “sentiu” ofendida por uma palavra, o campo discursivo é o da psicologia social. O discurso é o da linguagem ''politicamente correta.''
Há que se observar que a linguagem não diz exatamente o que diz. O sentido que se manifesta de forma imediata transmite outro significado mais importante que aquele que aparece na superfície. Há muitas outras coisas que falam e não são linguagens.
O politicamente correto parece basear-se na ilusão de que, modificando-se o nome das coisas, as coisas possam em si ser mudadas. O que a linguagem encobre ou descobre é a ideologia. As palavras que substituem as outras não são senão uma máscara do que se quer esconder.
O que nos interessa aqui não é o fato propriamente dito, mas a sua interpretação, que é cíclica: uma interpretação de uma interpretação que gera outra interpretação e assim indefinidamente. A linguagem é representativa da ideologia que se quer veicular e aí o signo é usado como eufemismo, mascara a interpretação. A interpretação nasce da interlocução e é construída através das formações discursivas e ideológicas estabelecidas. Se procurarmos nos dicionários iremos encontrar vários sentidos para a palavra negro, que não fazem somente uma alusão à raça. Se raciocinarmos assim teremos que fazer um boletim de ocorrência contra os que dizem, quando se esquecem de algo, "deu branco". Analisando sob a ótica desse vereador, a expressão ''dar branco'' também é pejorativa, pois significa, neste caso, esquecimento. O mesmo pode-se dizer do amarelar, na expressão: ''Fulano amarelou.'' Significando acovardou. Os defensores dessa raça também deveriam entrar com recurso. Também não poderíamos permitir a expressão judiar, ou judiação, pois estamos nos referindo ''às pessoas do povo eleito''(para empregar uma expressão politicamente correta).
Quando alguém disser algo do tipo: ''isto é um golpe baixo'', ou ''seu comportamento é baixo'' ou ainda '' o que vem de baixo não me atinge'', as pessoas de baixa estatura poderão se sentir ultrajadas e vítimas de preconceito e, nesse caso, como os antecedentes, podem entrar com uma representação contra seus autores. Mas vão continuar sendo baixinhos, apesar disto, ainda que as pessoas digam, no exercício de uma linguagem politicamente correta, ao se referirem ao tamanho, ''verticalmente prejudicadas''.
O que talvez esteja por detrás de qualquer atitude ''politicamente correta'' como a de substituir uma expressão em um cartaz publicitário é a atitude em que se baseia: defendendo os ''valores culturais'' mais díspares, sendo pelos direitos humanos, mas contra todo universalismo de critérios morais, cria-se uma espécie de ética que se devora a si mesma, um maniqueísmo que critica o maniqueísmo, uma censura feita só de ''respeito às liberdades''. Pois como já disse o poeta, Drummond, em Versos Negros (Mas Nem Tanto):
(...)
Viva, portanto, amigo. Viva, viva.
de qualquer jeito, na esperança viva
de que o câncer há de morrer de câncer.

Ou morrerá- melhor- pela coragem
de enfrentarmos o horror desta linguagem
que faz do câncer dor maior que o câncer.

Pois se souber do trágico brinquedo
que é ver câncer em tudo desta vida,
o câncer vai morrer- morrer de medo.

O representante do povo poderia gastar suas energias e seu precioso tempo em prol, por exemplo, da própria educação. Tanto brancos quanto negros estão saindo da escola sem saber ler. Sem conhecer de fato as implicações da leitura e o que leva a não saber ler ou compreender os discursos da sociedade, porque a escola se transformou em plataforma de discursos, em arma política, e os alunos, principalmente os pobres, (dentre eles negros e brancos) em números estatísticos. As diversas possibilidades de significação de uma palavra não estão sendo, nesse caso, levadas em conta. Contudo, por força de um discurso político, nem tão correto assim, cria-se um caso de polícia, fazendo com que tanto o poder judiciário, quanto o legislativo gastem seu tempo com um discurso inócuo, enquanto poderiam estar somando esforços para se fazer justiça a negros, brancos, amarelos, judeus ou cristãos, permitindo-lhes uma justa distribuição de rendas, uma educação mais democrática, numa sociedade em que os negros, (a raça) não se sintam discriminados pela simples asserção de uma palavra em um cartaz, pois, conforme cantam os Titãs, ''palavras não são más, palavras não são quentes, palavras são iguais sendo diferentes. (...) Palavras não têm cor, palavras não têm culpa''

4. REFERÊNCIAS

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ECO, U. O signo. Lisboa: Presença, s.d.

FROMMER, Marcelo. Titãs Acústico. Rio de Janeiro: Icd ( ), estéreo, 5 pol.

LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano. 5. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991.

RIBEIRO, Ormezinda. M. O ensino de gramática na escola: suas relações com o signo lingüístico e com a articulação do pensamento na língua. Dissertação de mestrado. Uberlândia: UFU, 1999.

RIBEIRO, Ormezinda M. ''Direito e Lingüística: uma relação de complementaridade'' In Revista Jurídica Unijus, 2 (3), 2000. p. 81-91. ISSN 1518-8280.

RIBEIRO, Ormezinda .M. ''Construção, destruição e (re) construção do sentido: uma análise do mal-entendido na interpretação de um texto legal.'' .In Revista Jurídica Unijus, v. 4 nº 1, 2001, p.99-110.

RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2000.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral.Trad. de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein, 4. ed. São Paulo: Cultrix/USP, 1972.

WARAT, Luis A. O Direito e sua linguagem. 2. ed., Porto Alegre: Fabris Editor,1995.

Publicado em: RIBEIRO, O. M. As palavras e a Justiça: considerações sobre a polissemia a partir de uma notícia de jornal. Revista Jurídica UNIJUS, Uberaba-MG, v. 05, p. 41-51, 2002.