sábado, 19 de julho de 2008

O papel da gramática no ensinode língua materna. Ou porque nossos alunos não sabem português.


ABSTRACT: This paper is a study on the teaching of grammar in schools, under the focus of the relationship between language and thought, considering the linguistic signification as the language unit, trying to confront the contribution of traditional grammar and modern Linguistics. It is necessary to use this approach if we consider that the teaching of grammar should begin from the theoretical knowledge of its object, showing the relationship between language and thought, causing a reflective attitude in the teachers and serving as technical aid in their work. In relation to the students, this reflective attitude should result in pratical activities, so that they can reach the linguistic assurance needed in the various situations of communicative interaction; we believe that this could avoid exaggerated emphasis being attributed to terminology as the essence of teaching.
KEYWORDS: Grammar, Teaching, Language.

RESUMO: A partir de uma abordagem da relação língua/ pensamento, este trabalho reflete sobre o ensino de gramática na escola, estabelecendo um confronto entre a contribuição da gramática tradicional e da Lingüística moderna. Considerando que esse ensino deve partir do conhecimento teórico de seu objeto, procura mostrar a relação entre língua e pensamento para efeito de reflexão e subsídio técnico aos professores. No que tange aos alunos, essas reflexões devem resultar em atividades práticas, para que possam adquirir uma segurança lingüística necessária às diversas situações de interação comunicativa, evitando assim, que a ênfase exagerada da nomenclatura seja a essência desse ensino.

PALAVRAS-CHAVE: Gramática, Ensino, Língua.

INTRODUÇÃO

“Saber falar significa saber uma língua. Saber uma língua significa saber uma gramática . (...)
Saber uma gramática não significa saber de cor algumas regras que se aprendem na escola, ou saber fazer algumas análises morfológicas e sintáticas. Mais profundo do que esse conhecimento é o conhecimento (intuitivo ou inconsciente) necessário para falar efetivamente a língua.”
Possenti (1997, p. 30)

Com vistas à maior eficiência do trabalho com o ensino de língua materna em nossas escolas, pretendemos apresentar um estudo das relações entre o ensino da gramática e a relação língua/pensamento, pois, se o propósito do ensino de gramática são as normas que organizam a expressão do pensamento, é imprescindível que se considere, na perspectiva desse ensino, todos os aspectos que o envolvem. Não basta simplesmente estudar gramática para se expressar satisfatoriamente, ou para compreender o que se lê. Há que se compreender a linguagem como atividade mental que realiza o pensamento pela ação da língua. Vislumbramos, então, a necessidade premente de estabelecer no ensino de língua materna esse elo de ligação. É necessário compreender como se processa a passagem da idéia à forma para que a sistematização de seu estudo seja realmente eficiente, uma vez que aula de português tem sido sinônimo de aula de gramática.
O ensino de gramática mostra como funciona a língua, a infra-estrutura lingüística, ou seja, a gramática de cada língua não só se constitui no instrumento que permite a eclosão do pensamento, mas determina a forma que envolve a atividade mental, sintetizando tudo que se passa no espírito daquele que usa a faculdade da linguagem. O sistema lingüístico é, portanto, o organizador de nossas percepções da realidade, tendo em vista que discernimos a natureza e a sociedade segundo as vias traçadas pela língua que falamos.
A escola tem falhado quando privilegia o ensino da terminologia gramatical, quando separa o ensino de gramática do trabalho com a leitura e produção de textos, quando dá ênfase à prescrição desde as séries iniciais e segue privilegiando um ensino prescritivo em vez de enfatizar o ensino produtivo da língua.
Nosso propósito com este trabalho não é o de analisar os tipos de gramáticas ou pseudo-gramáticas, atualmente existentes e expostas nas escolas brasileiras, mas fazer ou suscitar uma reflexão acerca do ensino de gramática na escola, tendo como base os estudos lingüísticos.
Dessa forma, teceremos nossas considerações sobre o papel da gramática no ensino de língua. Para tal, partiremos de observações de nossa própria prática docente, ancorada em leituras e reflexões sobre o assunto em epígrafe.
Inicialmente, procuraremos traçar um quadro geral do ensino de língua na escola, mostrando sucintamente, através de considerações práticas, a posição da gramática nesse ensino. O que nos interessa não é repetir o já dito, mas organizar os dados empíricos que temos selecionado ao longo de nossa experiência docente: nossas leituras sobre o assunto, nossa prática cotidiana, além do que é considerado consenso no repertório escolar.
Em um segundo momento, pretendemos apresentar o surgimento do se chamou gramática com a intenção de avaliar o contexto que cercou o seu nascimento e que a precedeu e assim, fazer uma análise de como essa disciplina tem sido apresentada na escola, nos dias atuais, a fim de refletirmos sobre a nossa prática docente tendo sempre em vista seu o ensino. Tentaremos mostrar a relação intrínseca e necessária que há entre linguagem e sociedade e a natureza das relações entre a linguagem e a realidade a fim de estabelecermos para o ensino de gramática um objetivo claro e coerente com a sua função primeira: a organização do pensamento através da língua. Focalizaremos, além do processo histórico que constituiu a disciplina gramatical, os diferentes motivos que levaram à normatização, com a intenção de deixar claro que a questão do dogmatismo da gramática tradicional, no qual se baseia ,ainda, a escola atual para o ensino da Língua Portuguesa, apesar dos avanços dos estudos lingüísticos, não segue a mesma linha da origem da gramática na Grécia.
Assim, procuraremos traçar um panorama da evolução da gramática e esboçar a relação que há entre o pensamento e a linguagem enfocados pela gramática tradicional e a Lingüística moderna, considerando o indivíduo na sociedade.
Maldonado (1967, p. 28) apresenta-nos a concepção primitiva da gramática que pode ser útil e oportuna a esse nosso ensaio. Apoiados nesse lingüista e debruçando-nos na história da evolução da gramática percebemos que a concepção que considerava a linguagem como um organismo, um estado sujeito a certas regras que determinam suas formas é a que se descortina com os clássicos e que através dos escolásticos chega até aos nossos dias, embora inclua aspectos distintos que variam desde os puramente lingüísticos até aos sociológicos, passando pelos afetivos, lógico, psicológicos, dentre outros.
Essa idéia, conforme reforça Maldonado, não é única. Junto dela existe quase em condição de igualdade, mas historicamente posterior, a concepção que se pode chamar de não gramatical e que repousa sobre a evidência de que a linguagem está em contínua atividade, num processo constante de evolução, razão pela qual os estados de língua são meras abstrações temporais. Essa concepção foi a que superando a gramatical, no início do século XIX, originou o progresso extraordinário da ciência lingüística.
Maldonado (1967, p. 29) observa que a primeira concepção é, para Hjelmslev, a verdadeira gramática. No entanto, pondera que a concepção gramatical clássica não é apropriada para se criar uma gramática científica moderna. A gramática tradicional, é, por assim dizer, um híbrido lógico-filosófico-normativo, incapaz, pela heterogeneidade de sua natureza, de oferecer caráter científico e por estar baseada unicamente nas línguas clássicas e, em razão de sua característica idiosincrônica não poder ser aplicável à multiplicidade das línguas.
Se se quer estabelecer um parâmetro para o ensino de gramática na escola, há que se deixar claro o próprio conceito de gramática que não está bem delimitado e considerar que disto decorrem várias conseqüências, tais como os rumos da própria aplicação deste ensino, ou ainda a sua validade diante dos objetivos propostos.

Temos constatado com freqüência, ao longo de nossa vida profissional, que a disciplina que lecionamos tem sido trabalhada de uma forma equivocada, sem uma proposta clara e definida dos objetivos que queremos alcançar com o seu ensino.
Língua Portuguesa, Língua Materna, Gramática, Comunicação e Expressão, Português, etc., não importa a terminologia empregada para indicar essa disciplina nas escolas, tem sido ministrada sem que se estabeleça o seu verdadeiro papel na vida prática de nossos estudantes.
Toda atividade pedagógica, tem necessariamente que passar por uma primeira questão básica: o que se pretende com seu ensino? E mais ainda, há que se definir claramente qual é o objeto desse ensino. A maneira como se vê o objeto determina o modo de se trabalhar com ele.
O dogmatismo da gramática normativa tem se transformado em motivo de críticas ou de simples aceitação passiva por parte de alguns de seus aplicadores, sem, contudo, levar a um exame racional que vise ao aprofundamento de questões práticas na escola, tais como: por que ensinamos gramática? Se adotamos a gramática normativa como nosso manual de consulta, o fazemos simplesmente porque nossos professores também o fizeram, ou porque estamos conscientes de sua verdadeira função didática?



CONSIDERANDO A QUESTÃO


Diante do quadro deficitário da educação brasileira, somos levados a procurar os seus responsáveis diretos ou indiretos, tornando-se comum atribuirmos a responsabilidade aos alunos, alegando que eles não pensam para escrever, que não se interessam, ou ainda que o nível de nosso corpo discente está cada vez mais baixo. Não raras vezes ficamos alarmados diante da precariedade do desempenho verbal de nossos alunos. Entretanto, esse alarme não passa de queixas que não evoluem para uma avaliação crítica consciente dos problemas com os quais nos deparamos. Por força das evidências, temos que reconhecer que não só os alunos, mas também professores e o sistema de ensino protagonizam essa situação.
Delimitando mais a questão, em relação à confusão que freqüentemente ocorre no ensino da gramática na escola, podemos atribuir responsabilidades não só ao desconhecimento da fundamentação teórica que envolve essa aplicação, por parte dos professores, somado à insegurança na aplicação dessas teorias, mas também ao sistema escolar por ter legitimado essa atitude quando institucionaliza o equívoco. Ainda, no interior desse processo, o professor retoma, em seu trabalho pedagógico, o que tem sido considerado como ideal. Muitas vezes essa concepção é fornecida pelo livro didático, nem sempre elaborado à luz de teorias claras, constituindo-se um grave complicador.
Esses livros, por diversas vezes, são confundidos com a gramática, como se essa tivesse tomado uma nova roupagem, ou seja, há uma forma equivocada de encarar o livro didático como uma gramática “colorida”. É certo que os autores de livros didáticos têm mostrado um esforço considerável para acompanhar a evolução dos estudos lingüísticos. Esses livros têm se modernizado, procurando apresentar textos que captam as diversas áreas do conhecimento, contemplam um maior número de variações lingüísticas, procuram abordar questões de semiologia e teoria da comunicação, no entanto continuam insistindo no ensino da nomenclatura como o objetivo principal. O que agrava mais ainda a situação do ensino da gramática na escola é o fato de que muitos professores tomam o livro didático como modelo insubstituível e se mostram totalmente dependentes desse manual. Ali têm suas aulas prontas, com respostas perfeitas e adequadas com as quais as respostas dos alunos devem estar sempre e inexoravelmente de acordo. Muitas vezes o professor espera que o livro didático o substitua. Esse livro nem sempre é escolhido com base nos propósitos do ensino, mas é tomado como verdade incontestável e, muitas vezes selecionado por apresentar inovações, e mascarado pelas pseudo- incentiva o reforço do ensino da gramática puramente normativa, com regras e respostas pré-estabelecidas, sem as devidas considerações sobre

Seguindo a tradição pedagógica do ensino de língua Portuguesa nas escolas de Ensino Fundamental e médio, cuja tendência é investir no reforço das taxonomias gramaticais, de um modo geral, na grande maioria dos manuais de ensino de Língua Portuguesa, o trabalho com o texto serve de pretexto para o ensino metalingüístico.
A maioria dos livros tidos como gramática tem como atividade básica o exercício de classificação das orações, ou a tarefa de depreender os significados dos morfemas da língua, com isso, espera-se que os alunos estejam preparados para a redação de textos e a agir com mais independência perante o material impresso a que têm acesso. Ilari (1985, p. 57) destaca que ao proceder assim, a tradição gramatical, considera o texto como somatório de frases e como subproduto da gramaticalização e não como um todo orgânico, com regras e leis próprias.
Nossa experiência no ensino de língua materna, tanto no ensino fundamental e médio, como no ensino superior, tem nos mostrado que o ensino de gramática em nossas escolas tem sido totalmente prescritivo, embasado nas regras da gramática normativa, cuja metalinguagem é incompreensível para os alunos: desde a 1ª série do ensino fundamental começa-se a despejar uma nomenclatura desprovida de significado para o aluno, que se vê obrigado a decorá-la sem compreendê-la. O resultado é o que encontramos no ensino superior: alunos que não sabem mais o que é substantivo, advérbio ou objeto direto, tampouco sabem construir uma sentença coerente e se mostram cada vez mais com dificuldades de expressar seu pensamento de maneira clara e objetiva, refletindo essa deficiência em todas as disciplinas que envolvem argumentação e reflexão.
O ensino da gramática tem seguido um caminho inverso ao seu objetivo: primeiro se ensina a metalinguagem, “o pode e o não pode” no uso da língua, quando o aluno não exercitou o bastante seu uso efetivo, depois espera-se que ele saiba desempenhar adequadamente a função comunicativa e estabelecer uma relação compreensível entre língua e pensamento.
Há que se implementar modificações estruturais nos centros de formação docentes em todos os níveis: cursos de magistério, licenciatura em Letras e, sobretudo, efetivar a formação permanente por meio de seminários de atualização e aprofundamento das questões que envolvem o ensino de língua materna visando a reflexão e a busca de uma melhor formação teórica.
Estamos conscientes de que o problema básico da ineficiência do ensino de gramática na escola se dá em razão da má formação do quadro docente. Sabemos que esse é um problema cíclico. De início temos o professor de nível fundamental, cuja formação básica exigida é o nível médio, ou seja, do professor que tem a difícil tarefa de alfabetizar um aluno falante da língua na qual será alfabetizado, só é exigido que tenha o curso de magistério de primeiro grau. Não se espera que esse profissional tenha em seu currículo uma formação pedagógica superior, nem tampouco que conheça a estrutura da língua com a qual irá alfabetizar. O curso de Letras também não prepara para a alfabetização. O que temos presenciado nas escolas, principalmente nas escolas públicas, é uma distribuição de funções escolares considerando tão somente o tempo de serviço na escola, na rede ou na função. Isso significa que de acordo com sua antigüidade na instituição o professor pode escolher a turma que irá lecionar. Os professores com mais tempo de serviço, os mais experientes, na maioria das vezes, preferem turmas já alfabetizadas. Conseqüentemente, para os professores recém formados, ou com menos experiências, acabam sobrando as classes em processo de alfabetização. Já dissemos que esses professores não trazem em seus currículos a formação básica necessária para compreender a estrutura da língua com a qual irão alfabetizar. Muitas vezes, em razão da precariedade do curso médio que fizeram, não são ao menos leitores ou produtores de textos proficientes. Seus alunos, então, chegarão nas séries finais do ensino fundamental com sérios problemas de leitura e escrita. Problemas que comprometerão todo o curso, agravando-se mais ainda pelo fato de que também os professores dessas séries não tiveram em seus cursos de licenciatura a formação mínima exigida para uma real reflexão acerca da necessidade de um maior embasamento sobre a relação língua/ pensamento, uma vez que os cursos de licenciatura em Letras também têm privilegiado o conhecimento da gramática normativa somente no plano da nomenclatura, sem maiores preocupações com a relação língua /pensamento em um nível mais filosófico. Temos, então, que no ensino médio, especificamente no magistério de primeiro grau, os alunos já chegam simplesmente ignorando esses fatores e seguem repetindo o que lhes foi ensinado: a nomenclatura pura da gramática, sem contextualização ou aplicação prática. Resultado: não conhecem profundamente a estrutura da língua e não se encontram aptos a usar essa língua e muito menos a ensiná-la.
O ciclo se completa quando esse aluno, egresso de um curso médio que não lhe deu condições de desenvolver uma competência comunicativa ou de se posicionar como um leitor crítico, prepara–se em um curso pré-vestibular para ingressar em uma Instituição de Ensino Superior.
Entendemos que esses cursos, com vistas somente a garantir ao aluno uma vaga na Universidade, não fazem mais do que treiná-lo na estrutura da língua. No ensino de gramática abusam das regras e das exceções, fazendo com que o candidato decore as possíveis questões que cairão no vestibular, ou ainda criam uma “metodologia” própria que consiste em facilitar a memorização das regras da gramática normativa empregando rimas, trocadilhos ou paródias. No que tange à língua em uso, ou ao ensino de redação, o problema nos parece mais grave, pois a maioria desses cursinhos limita essa atividade a uma cartilha de pode-não-pode, impedindo que o aluno se posicione como autor e enunciador de seu texto. Nessa cartilha, o que predomina são as imposições arbitrárias e desprovidas de um fundamento, as quais o aluno deve seguir à risca para fazer jus a uma vaga na Universidade.
Assim, o aluno se comporta como mero preenchedor e lança mão de estereótipos sem fazer uso de sua condição de agente e senhor da linguagem nas suas mais variadas possibilidades de realização. Não se posiciona no contexto histórico-social, sendo assim, não opina, não reflete, apenas exercita o jogo, não se envolve nem se engaja, portanto, não promove a passagem do enunciador a autor. Não é responsável pelo que escreve, apenas registra graficamente. Logo, não diz, não se responsabiliza no processo por suas falas. Ao descaracterizar o aluno como sujeito, a escola impossibilita-lhe o uso consciente da linguagem, pois, não há um sujeito que diz, mas um aluno que devolve ao professor o que lhe foi dito pela escola, caracterizando uma situação artificial. A escola, portanto, não capacita o aluno a superar as limitações da comunicação oral quando não promove situações autênticas de comunicação.
De acordo com Barros (1985, p. 45) é no ato de escrever que se aprende a redigir e é essa a condição para se adquirir possibilidades mais amplas de participação social, o que só pode ocorrer autenticamente em situações de comunicação.
Nesse aspecto, é relevante o papel da atividade pedagógica que deverá fazer com que o aluno assuma esse papel social na sua relação com a linguagem, dentro e fora da escola, constituindo-se em autor, ou seja, promover a passagem da função de sujeito-enunciador para sujeito-autor.É nesse momento que a reflexão lingüístico-pedagógica deve favorecer a atuação do professor de língua e promover o engajamento do aluno.
No entanto, o processo ideológico que está inserido na escola não permite a passagem do enunciador para o autor, fazendo com que o ensino prescritivo da língua se sobreponha ao descritivo, e acabe por se preocupar muito mais com o que não pode ser feito do que com o uso efetivo da língua, gerando uma cartilha de “pode-não-pode” e uma insegurança no aluno que passa a acreditar que não sabe a sua língua.
O que se observa é que a escola estabelece relações muito rígidas e bem definidas, criando situações em que o aluno se vê obrigado a escrever limitado por padrões previamente estipulados e crente de que seu texto será julgado e avaliado por um único leitor: o professor. E assim, não escreve o que realmente acredita, mas aquilo que pensa que o seu leitor (o professor) aprovaria, escolhendo os signos de acordo com o que seu professor espera que ele escolha, não se comportando, portanto, como alguém que diz algo por meio de seu texto, mas como alguém que repete o que lhe foi passado. Daí nasce a confusão: não é o pensamento do produtor que vai ser refletido através da língua pelo agenciamento de um autor, mas o pensamento ditado pelas regras da escola.
Formado professor, esse aluno repete o modelo que aprendeu na escola e segue treinando seus alunos no uso da nomenclatura gramatical e no “pode-não-pode” da redação.
Se compreendermos a linguagem como atividade de interação em que forma e sentido são funções das circunstâncias da enunciação e que o produtor, operando com um conjunto de fatores, promove suas escolhas no código e decide quanto à estruturação conceitual e formal do texto, estaremos aptos a criar em sala de aula condições mais propícias para a produção e compreensão da escrita. Neste aspecto, é relevante observar que, para que isso ocorra, é necessário compreender a relação língua/pensamento. O que implica uma inserção do sujeito na cultura, uma posição dele no contexto histórico–social, abordando a linguagem como um processo dinâmico e vital em permanente construção, ou seja, como um fato social.
O ensino descritivo, juntamente com o produtivo, deveria se sobrepor ao prescritivo, pois conhecendo e compreendendo o funcionamento de sua língua, em diversos níveis e em diversas situações, o aluno poderá utilizá-la de maneira adequada e aumentar os recursos que possui, para apropriar-se da maior escala possível das potencialidades de sua língua, em toda e qualquer situação em que tenha necessidade dela, constituindo-se então, em autor e não somente locutor da fala dominante.
A criação de condições de produção mais favoráveis é uma questão de convicção do professor em determinadas concepções teóricas. É a percepção da linguagem como atividade interacional e do texto como resultado do trabalho do produtor sobre as circunstâncias de enunciação que poderá levar o professor a buscar uma relação mais produtiva com seus alunos, colocando-se como interlocutor de seus textos e fazendo-se atento às condições mais “naturais” de produção da escrita, posto que impedida a intencionalidade e a perspectiva interativa não há de onde partir e nem aonde chegar, uma vez que o texto se constitui no processo de interação.
Desenvolver a competência comunicativa do aluno implica torná-lo consciente e atento ao processo de construção do texto. Nem sempre será possível, na escola, proporcionar aos alunos situações autênticas de produção de texto. E se a intenção do professor é criar, em sala de aula, condições mais apropriadas para a produção da escrita, um fator imprescindível é se posicionar como leitor, e não como juiz.

ALGUMAS REFLEXÕES

Com essas reflexões entendemos que, apesar do fato de os estudos lingüísticos terem evoluído consideravelmente no plano teórico, a nossa prática pedagógica não caminha no mesmo ritmo, dadas as dificuldades da aplicação voltada para a língua tal como ela é: um mecanismo vivo. Assim como na teoria Chomskyana uma criança aprende uma língua se atinge aos requisitos: maturidade, exposição e prontidão, também para a prática de um ensino de uma gramática contextualizada, devem estar seus aplicadores desta forma preparados.
Há um novo traçado espistêmico que constrói o conhecimento a partir das realidades sócio-culturais-regionais significando uma virada importante na estrutura do currículo. De modo algum se pode imaginar a escola separada do contexto de vida de seus alunos, o que significa dizer que a sua linguagem deve ser considerada.
Se o propósito do ensino de gramática são as normas que organizam a expressão do pensamento na língua e a língua é uma entidade impalpável, abstrata, que determina o pensamento, esta não deve ser desvinculada de seu sujeito, pois sendo energéia, é atividade do falante e é a linguagem deste falante que deve ser considerada em todos os seus aspectos. Cabe ao professor de língua, conhecer a fundamentação teórica que sustenta o seu ensino, para refletir acerca de sua aplicação na escola. O que tem sido feito até hoje tem sido uma mistura da gramática tradicional e da Lingüística moderna no ensino da gramática, sem, contudo, aprofundar-se na questão teórica que envolve essa aplicação.
Ainda se observa um abismo muito grande entre os estudos lingüísticos e os problemas práticos no ensino de língua materna. Não se pode simplesmente pretender criar um manual de receitas para aplicação, posto que as relações entre teoria lingüística, descrição de uma língua e seu ensino não são tão diretas como se acreditava no passado.
Não há uma fórmula mágica para resolver o problema do ensino de gramática na sala de aula, mas o conhecimento teórico proveniente de leituras especializadas, de pesquisas que levem o professor a indagações e reflexões acerca de sua prática é um passo decisivo no processo de mudança. Mudança que implica, inicialmente, uma mudança de postura frente ao próprio objeto de trabalho, seguida de uma modificação nos hábitos e atitudes docentes. Urge operar inovações tanto na escolha de novos conteúdos como na concepção metodológica. A competência na diferenciação e aplicação dos instrumentos metodológicos indicará o espaço e a autonomia profissional de cada um.
Outra consideração a ser feita é a de que, embora a Lingüística seja uma ciência descritiva e não prescritiva, o uso descritivo não exclui o uso prescritivo da língua. Há que se consultar, sim, a gramática normativa da língua, mas não a tomar como verdade única e incontestável. Numa sociedade desigual, em que a disputa entre as classes é evidente, o não uso da língua padrão representa a alienação do indivíduo e nenhum acesso ao poder.
O ensino de língua materna deve voltar-se para a expansão das potencialidades do homem, tornando-o mais consciente de si mesmo e de seu papel social. E isso só ocorrerá, se, enquanto aluno, ele exercitar a capacidade de criar e de buscar o conhecimento, refletindo acerca de suas potencialidades. Nesse prisma, a opção pelo ensino produtivo da língua é que vem dar suporte ao nosso trabalho e a Lingüística se apresenta como de fato deve ser toda ciência: eficaz e hábil na constatação dos problemas que cercam os fatos de língua numa perspectiva que alcance a realidade imediata do aluno, observando as novas concepções metodológicas e colocando o professor como interlocutor do aluno e mediador da aprendizagem e não como aquele que detém o saber que há de passar à classe.
O propósito do ensino de língua materna deve ser o de partir do conhecimento prévio do aluno, levá-lo do senso comum ao conhecimento científico, por meio de atividades que o façam levantar hipóteses, comparar, analisar, aceitar ou refutar argumentos. Dessa forma, professor e aluno interagem em busca do conhecimento, por meio de reflexões, utilizando-se diferentes recursos. Nesse trabalho, deve-se levar sempre em conta que a aprendizagem é um ato do aluno, que o conhecimento é fruto de sua construção, e que o professor é aquele que, baseado nas teorias de como se aprende e como se ensina, interfere nesse processo de construção do conhecimento, desestabilizando as hipóteses falsas formuladas pelo aprendiz, mas colocando sempre o discente como protagonista de sua própria aprendizagem.
Assim, o estudo da gramática é proposto na perspectiva de sua organização estrutural, da sua tessitura na organização do texto, e que evidencia os elementos da língua, como os operadores discursivos e os itens lingüísticos responsáveis pelo estabelecimento de relações entre a língua e o pensamento, de como se articulam os mecanismos e traços lingüísticos que servem de suporte à construção do quadro da língua.
Já dissemos que a boa formação dos textos passa pela gramática e não somente porque o texto é composto por frases que têm uma estrutura gramatical. Mas porque é na produção lingüística que o falante joga todo o domínio dos processos de mapeamento conceptual e de síntese textual, dependendo, portanto de uma “gramática” que proceda a essa organização. Reiteramos que para se expressar bem em uma língua é necessário mais do que o domínio do modo de estruturação de suas frases. É preciso saber combinar essas unidades sintáticas utilizando um agenciamento sintagmático, o que envolve a capacidade de adequar os enunciados às situações, aos objetivos da comunicação e às condições de interlocução. E isso tudo se integra na gramática.
Isso implica criar uma atitude que faz do ensino da gramática uma procura de coerência: as proposições estão em função de um significado, e devem ser interpretadas em função desse significado; as escolhas lingüísticas do autor não são aleatórias, mas são aquelas que, na sua visão, garantem a coerência de seu discurso e esse discurso tem uma forma na estrutura lingüística, o que deve ser percebido pelo estudante de gramática, não apenas decorado, ou repetido.
Como a escrita está intimamente associada à leitura, são processos simultâneos e interdependentes, ou seja, a leitura interage na escrita e a escrita interage na leitura, o aluno descobrirá que escrever significa operar escolhas lingüísticas de modo a expressar seu pensamento com organização, clareza e adequação, na modalidade escrita da língua.
Somente encarando o ensino da gramática como um processo simultâneo e concomitante ao ensino de leitura é que a escola estará apta a preparar o professor para desenvolver a habilidade de leitura crítica no aluno, ampliando sua capacidade de pensar e refletir, com conteúdos programáticos aprofundadores e será capaz de desenvolver plenamente sua competência comunicativa.
Foucambert (1993, p. 37) sugere que as escolas deveriam transformar os alunos em leitores e esclarece que o problema da leitura só será resolvido quando as pessoas passarem a ser leiturizadas, em vez de alfabetizadas. Segundo esse educador, o aluno deveria, desde os primeiros anos de escola, ter contato com a linguagem escrita, que não deve ser mera transcrição da linguagem oral, mas sim um instrumento realmente eficaz para a reflexão e a manipulação de conceitos. O objetivo final de um ensino de língua proficiente deveria ser, portanto, o de formar um leitor crítico capaz de ler o implícito do texto, refletir sobre o pensamento do autor, sobre as eventuais estratégias utilizadas por ele para mascarar seu ponto de vista. E isto só será possível se as aulas de gramática deixarem de dar ênfase exagerada ao ensino da nomenclatura ou do preenchimento de lacunas e privilegiar a reflexão acerca da estrutura da língua bem como a sua relação com o pensamento.
Constatamos que a prática de leitura na escola fracassa justamente pela forma como é operacionalizada. A leitura do texto, quando não é pretexto para se ensinar gramática normativa, é trabalhada linearmente, com a decodificação de conteúdos a serem avaliados. A escola não contribui no sentido de explicar os usos e funções da escrita, além de não estimular a leitura de maneira conveniente. As diversidades de práticas discursivas que caracterizam as várias formas de leitura são, pois, reduzidas às de prestigio na tradição escolar, ou seja, não há uma preocupação em preparar o aluno para compreender as várias possibilidades de expressão lingüística nas suas mais diversas variedades.
Tais práticas não estão voltadas para a concretização de um pressuposto geral básico que é o da articulação entre função social da leitura e o papel da escola na formação do leitor. No lugar de se trabalhar a produção de sentido, a crítica, a interação, dá-se espaço apenas à autoridade da voz do professor que perpetua a escola como o lugar privilegiado do repasse do conhecimento, compelindo o aluno a escutar, copiar e reproduzir.
O professor não somente ensinaria o aluno a ler (decodificar) o que o autor disse, mas estaria muito mais voltado para as estratégias que propiciassem ao aluno a habilidade de ler o que o autor quis dizer. Ajudar o aluno a desvendar o mundo por meio da leitura é proporcionar o desenvolvimento de sua consciência metacognitiva, o que o tornaria, além de alfabetizado, letrado. Para desencadear esse processo, é mister que a leitura seja para o aluno um processo coerente. A coerência resulta de uma conexão conceitual cognitiva entre os elementos do texto e seu receptor, ou seja, entre a escolha lingüística e a intenção do autor que será facilmente compreendida à medida em que se compreende como se dá o processo de formatação do pensamento na língua e esta correlação só será possível se o ensino de gramática estiver voltado para este objetivo.
Uma pedagogia da gramática concebida segundo esses princípios poderia reduzir consideravelmente a distância entre as aulas de gramática e de produção textual. Levar o aluno a pensar por escrito e não ser somente um mero preenchedor de folhas no exercício de redação, ou apenas um depositário da nomenclatura gramatical, mas que no exercício da linguagem possa realmente saber quem é o sujeito da ação, posicionando-se como tal, deve ser o propósito a nortear o ensino de língua materna.
A análise lógica deveria se fixar como exercício de descoberta das articulações comuns à linguagem e ao pensamento permitindo que se encontre na língua unidades e conexões que correspondam às unidades e conexões do pensamento. Assim, o aluno será capaz de compreender como a mente humana estabelece conceitos, concebe idéias, formula juízos e os encadeia em raciocínios pela língua, que servirá, então, como roupagem para um pensamento que não pode se materializar a não ser enformado na língua.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisando a trajetória da disciplina da gramática verificamos que a nossa gramática ocidental remonta à gramática grega. O surgimento da atividade gramatical entre os gregos foi, sobretudo, condicionado por uma situação histórica e cultural que floresceu a partir de séculos de vivência intuitiva e muitos séculos de exercício de um pensamento teórico estabelecendo as bases para a efetivação de uma atividade prática teoricamente fundamentada.
Sendo a gramática uma disciplina, que, pelas próprias condições em que surgiu, aparece com finalidades práticas, mas assentada sobre as bases de uma disciplinação teórica do pensamento sobre a linguagem, entendemos que também hoje, ao proceder a sua aplicação não podemos ignorar de modo algum o que se tornou o seu alicerce: sua configuração teórica.
O ensino de gramática na escola deve, portanto, se espelhar na própria marcha da instituição da gramática: partir de um esforço de análise do pensamento conceitual, dar uma atenção significativa aos fatos de linguagem para se chegar ao condicionamento lingüístico necessário à manifestação do pensamento pela língua.
Não se chega ao pensamento simplesmente pelo conhecimento da nomenclatura. Questionando problemas da relação entre a linguagem e o pensamento, constrói-se uma teoria do conhecimento, ainda que com objetivos teóricos, mas que certamente desencadearão uma prática sistematizada e formalizada dando corpo ao conteúdo de nosso ensino: as formas de organização do pensamento que só pode se materializar pela língua.
É pela forma que alcançamos o pensamento conceitual. É apreendendo na palavra a representação do que está no espírito, que damos corpo às nossas idéias saindo da essência imaterial para a percepção e a representação do nosso pensamento. É a linguagem que traduz as relações do homem com o mundo cabendo-lhe a função de organizar o pensamento dentro de uma estrutura gramatical.
O pensamento não é anterior à linguagem. Pensamento e linguagem provavelmente nasceram juntos e embora sejam independentes necessitam um do outro para serem manifestos. As relações mútuas que o espírito mantém com a forma de representação são, ou deveriam ser o objeto de interesse de todo aquele que se propõe a ensinar gramática, pois o ensino da gramática deve ter por excelência o propósito de mostrar de forma clara essa relação, posto que a língua, como estrutura, é o cunho do pensamento.
Acreditamos que é possível conciliar, nas aulas de gramática, as contribuições da Lingüística Moderna à gramática normativa. Entretanto, é necessário que se conheça a bem desse ensino, o processo do que se transformou na disciplina gramatical para que a orientação do professor seja eficaz, a fim de que esse ensino possa promover a ligação entre a fala do aluno (reflexo de seu pensamento) e situações potenciais de fala. Desse modo, o professor proporcionará, na escola, exercícios autênticos, sem gastar o maior tempo de suas aulas no ensino da terminologia gramatical, em detrimento do exercício da língua como um mecanismo dinâmico.


Referências

BARROS Jayme. Encontros de redação, São Paulo: Moderna, 1985.

FOUCAMBERT J. A leitura em questão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.

GERALDI, João W. Linguagem e ensino. Exercícios de militância e divulgação. Campinas: Mercado de Letras, 1996.

ILARI, R. A Lingüística e o ensino da língua portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 1985.

MALDONADO, A. Teoria de la lengua y historia da la lingüística. Madrid: Alcalá, 1976.

POSSENTI, S. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: Mercado de Letras, 1997.

RIBEIRO, Ormezinda. M. O ensino de gramática na escola: suas relações com o signo lingüístico e com a articulação do pensamento na língua. Dissertação de mestrado. Uberlândia: UFU, 1999.

SAINT AUGUSTIN. Oeuvres, nº 11.Le magistère chrétien. Paris: Desclée de Brouwer, 1949.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral (Trad. de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein), 4 ed. São Paulo: Cultrix/USP, 1972.

Publicado em: RIBEIRO, O. M. O papel da gramática no ensino de língua materna. Ou por que nossos alunos não sabem português. Revista Athos & Ethos, Uberlândia MG, v. 02, p. 299-324, 2002

Nenhum comentário: