sábado, 19 de julho de 2008

Construção, destruição e (re) construção do sentido: uma análise do mal-entendido na interpretação de um texto legal.


Irma Beatriz Araújo Kappel
Miriam Silveira Parreira
Ormezinda Maria Ribeiro- Aya

RESUMO
Neste artigo suas autoras procuram analisar a questão do mal entendido na interpretação de um texto legal respaldando-se na Sociolingüística, cuja teoria se propõe a buscar o que de social é constitutivo na linguagem de forma a compreender o ato lingüístico simultaneamente ao ato social, sem deixar de considerar os aspectos semânticos, pragmáticos, argumentativos e discursivos que guardam afinidade com essa teoria.

1-INTRODUÇÃO

“A sociolingüística difere de algumas preocupações anteriores com as relações língua sociedade, pelo fato de que, seguindo novas perspectivas da própria lingüística, considera tanto a língua quanto a sociedade como sendo uma estrutura e não uma coleção de itens ”

(BRIGHT, 1974, p. 17)

Muitas vezes, para se compreender as interpretações que são dadas aos textos legais, busca-se na lingüística imanente as respostas a essas questões, na tentativa de condicionar os fatores internos ao sistema lingüístico ao que se denomina interpretação, sem, entretanto, direcionar a análise para uma teoria que, além de lingüística, vislumbre também uma leitura sociológica da situação em evidência.
Assim, para analisar a questão do mal-entendido na interpretação de um texto legal, esse artigo procura apresentar a Sociolingüística como uma teoria lingüística que se propõe a buscar o que de social é constitutivo da linguagem e que, sobretudo, coloca a ação lingüística ao lado da ação não-lingüística, de modo a compreender o ato lingüístico simultaneamente ao ato social.

A questão posta em relevo por essa teoria é exatamente como considerar aquilo que é socialmente constitutivo. Uma teoria lingüística que leve em conta não apenas os enunciados produzidos, mas o evento particular que produziu a enunciação é, ao nosso ver, a base sólida para uma tentativa de análise de um texto legal, cuja interpretação é dada a partir do que podemos chamar de mal-entendido. Através dessa abordagem, pretendemos refletir sobre as diferentes interpretações de um mesmo texto legal, situando-nos, sobretudo, nos eixos da Sociolingüística, sem, entretanto, deixar de considerar os aspectos semânticos, pragmáticos, argumentativos e discursivos que guardam afinidade com essa teoria.

A seguir, examinaremos a complexidade das relações intertextuais que permeiam, ou tangenciam o texto em questão e que torna evidente a opção por uma proposta de abordagem através de uma teoria que não restrinja a linguagem a um mero instrumento de comunicação, ou que ao menos aponte para o fato de que também a não comunicação ou o mal-entendido tem seus propósitos ideológicos. Em um terceiro momento analisaremos as marcas lingüísticas de argumentação do corpus selecionado. As relações intertextuais que ora queremos fazer só podem ser explicitadas por uma teoria lingüística que não só leve em conta os enunciados, mas também a sua enunciação. Aristóteles, ao tratar do valor de verdade de proposições já havia advertido que os enunciados de uma ciência nem sempre são verdadeiros, uma vez que muitas vezes se apresentam como necessariamente verdadeiros ou como possivelmente verdadeiros. Dessa forma, a possibilidade e a necessidade modificam o sentido da simples verdade.

2-Delineando linhas teóricas e metodológicas da proposta

“Não há como pensar o Direito sem a sociedade, assim como não há como pensar a sociedade sem a linguagem”
RIBEIRO (2000, p. 90)

A importância da escolha de uma análise de um texto legal, partindo-se não da proposta de uma teoria lingüística imanente, que encaminha para uma análise literal em seu sentido restrito, mas de uma proposta, cujo cerne está na desconstrução do sentido literal, pela análise lingüística que desmascara o uso da linguagem como instrumento de comunicação na ordem do consenso, pauta-se basicamente no princípio de que as convenções são de natureza social e só uma teoria como a Sociolingüística, que se apresenta como uma teoria de ação, pode dar conta de seu papel na constituição do ato e da linguagem, e, conseqüentemente, pode ser competente para proceder à leitura de um texto legal que, de um lado não é claro o suficiente para exercer o seu papel de representação de uma ordem legítima, e, por outro, deixa, nas lacunas que lhe são intrínsecas, a possibilidade de uma outra leitura. Não existe consenso quanto à visão de mundo, existem apenas espaços coincidentes. E é nesse enfoque que direcionaremos a análise.

2.1-A Sociolingüística e as outras teorias

Um ponto essencial para nossa análise é estabelecer as condições que caracterizam e constituem o discurso, no caso específico o discurso do texto legal, nosso objeto de análise. Para a Análise do Discurso (A.D.) não há um sujeito que se apropria da linguagem, mas uma forma social de apropriação na qual está refletida a ilusão do sujeito, ou sua interpelação feita pela ideologia.

ORLANDI (1979, p. 47) ressalta que a A.D. procura tipificar os discursos das diferentes formações discursivas de modo a destacar constantes justamente onde o lingüístico e o social se articulam, da mesma forma que a Sociolingüística distingue que a variação é sistemática e funcional. Assim, os sistemas de signos “são tomados no jogo das formações discursivas que são reflexos e condições das práticas sociais.”
Há, segundo ORLANDI (1996, p. 98), uma relação significativa entre a A. D. e a Sociolingüística, uma vez que os pontos em comum na consideração do objeto de que tratam são evidentes. Para essa lingüista, o termo sociolingüística recobre vários trabalhos extremamente diversos, tais como: etnografia da comunicação, variação lingüística, relação com a linguagem e até mesmo análise de discurso, ou seja, trabalhos que tratam da análise da linguagem no contexto. Essa autora enfatiza, ainda, que na reflexão lingüística acerca das funções da linguagem não basta dizer que a função fundamental não é apenas informar, comunicar, ou persuadir, mas é também o reconhecimento pelo afrontamento ideológico.

Concordando que a “arbitrariedade” resulta do fato de haver uma relação entre o discurso e o sistema de produção no qual existe, entendemos que a teoria do mal-entendido, no texto oral, proposta por GUMPERS (1989, p. 190), na interação verbal, se adaptada, pode ser perfeitamente aplicada ao texto escrito, tendo em vista as várias interpretações que surgem de um mesmo texto, servindo, assim, aos nossos propósitos de análise.
Nessa perspectiva, adotamos o texto como uma unidade de sentido, dado por um efeito ideológico da posição do autor, assim como a interpretação do texto resulta de um efeito ideológico da posição do leitor.

MAMEDE (1995, p. 97) assevera que, no aspecto legal ou jurídico, o Direito enunciado pelo aparelho de Estado pode ser visto como um conjunto de textos que devem ser atualizados pelos indivíduos para que, na prática social, os comportamentos e situações que constituem suas mensagens sejam efetivamente difundidos e concretizados. Uma vez que nem todos conseguem buscar as normas na fonte, reconhecendo-as como textos normativos, ao retransmitir as mensagens, provocam alterações de conteúdo, ainda que seja a pressuposição legal, pois nem todos que lêem o enunciado normativo possuem ‘’competência lingüístico-jurídica’’ para atualizá-los adequadamente. Segundo esse jurista, a mensagem (a previsão normativa) pode falsear-se ao longo dos elos dessa cadeia de retransmissão, por erro; mas também por dolo, pois pode-se querer moldar o conteúdo semântico de uma norma ao interesse individual. Assim, esse autor ressalta que, nos espaços criados por tais distorções far-se-ia necessária a intervenção do aparelho de Estado, corrigindo-as, o que não ocorre na maioria dos casos.

DELFINO (2000, p. 33) enfatiza a necessidade de se interpretar a lei evitando, sempre que possível, sua rigidez, sem, contudo, ir contra o que nela foi estabelecido, para que se possa assegurar o bem comum e atenuar as injustiças sociais, a fim de se evitar decisões arbitrárias e sem sentido, que, segundo esse operador do direito, além de desprestigiar o judiciário, vão contra a natureza do objetivo da lei, que é o prestígio e o amparo do bem comum.

A língua é o instrumento próprio para descrever, para conceituar, para interpretar tanto a natureza quanto a experiência que se chama sociedade. A língua pode, graças a esse poder de transmutação da experiência em signos, tomar como objeto qualquer ordem de dados e até a sua própria natureza. BENVENISTE (1989, p.98) destaca que existe a metalinguagem, mas não há a metassociedade e afirma que o vocabulário é o aspecto que é melhor explorado da relação língua/sociedade, conservando testemunhos insubstituíveis sobre as formas e as fases da organização social, sobre os regimes políticos, sobre os modos de produção que foram sucessiva ou simultaneamente empregados.

Todavia, há que se considerar que as palavras não têm realidade fora da produção lingüística, pois elas existem nas situações nas quais são usadas, daí a importância do contexto para a construção do sentido.
De acordo com BENVENISTE (1989, p.232) a polissemia é a soma institucionalizada de valores contextuais, sempre instantâneos, aptos a se enriquecer e a desaparecer, ou seja, sem valor constante, sem permanência, mas sempre em resposta às necessidades imediatas de comunicação de uma sociedade.

A língua, no interior da sociedade, pode ser encarada como um sistema produtivo, pois ela produz sentido, graças à sua composição de significação e graças ao código que condiciona este arranjo. Ela produz também enunciações graças a certas regras de transformação e de expansão formais. E é neste prisma que a linguagem, no Direito deve ser enfocada, não como algo estanque, pronta, acabada e imutável, mas como uma reflexão da estrutura de uma língua viva, cotidiana, que serve a toda uma sociedade. Sociedade esta, que a condiciona e estabelece como patrimônio sócio - cultural. ( Cf. RIBEIRO, 2000, p. 86-87)

2.2-O Mal-Entendido na Interpretação do Texto Escrito

"O poder da palavra é o ´poder de mobilizar a autoridade acumulada pelo falante e concentrá-la num ato lingüístico"
Bourdieu, 1977

Os chamados mal-entendidos, ou problemas de comunicação, surgem, geralmente, nas interações verbais do dia-a-dia, nas quais a diversidade lingüística atua como um recurso comunicativo de forma a permitir que os interlocutores se baseiem em conhecimentos e paradigmas relativos às diferentes maneiras de articulação da língua para categorizar eventos, inferir intenções e antever situações que poderão ocorrer. Se, de acordo com GOFMAN (1974) uma elocução pode ser entendida de diferentes modos, as pessoas podem interpretar uma determinada elocução com base em suas definições ou percepções do que está acontecendo no momento da interação, num dado contexto histórico-social.

GUMPERS (1989) em seus trabalhos, propôs alguns procedimentos que serviram para identificar estratégias de interpretações disponíveis aos falantes, seguindo as pistas de contextualização, que se apresentam na forma dos traços lingüísticos ou não lingüísticos que contribuem para assinalar as pressuposições contextuais. Assim, de acordo com esse autor, é possível, a partir dessas pistas, conhecer as causas do mal-entendido, ou os problemas de comunicação.

Da pesquisa de Gumpers, depreendemos, para a análise dos textos em questão, a possibilidade de adaptar a interpretação do texto oral às questões que dizem respeito ao texto escrito através das marcas, ou pistas lingüísticas, que neles se circunscrevem. Nossas reflexões se darão em torno de um texto legal- Emenda Constitucional nº 20 de 1998, Artigo 1º , que se refere ao Artigo 40 da Constituição Federal/88, Parágrafo 10- que não explicita as condições da nova imposição, tentando usar uma linguagem objetiva e neutra, mas que , assim procedendo, abre espaços para entendimentos diversos e contraditórios, ou seja, o mal-entendido.
DELFINO (2000, p. 24) enfatiza que: “a palavra, mesmo usada de forma correta, gera, muitas vezes, interpretações distintas, pelo fato de a linguagem normativa não apresentar significados unívocos”.

2.3- Um breve perfil dos sujeitos que elaboraram os textos
Texto 1 – Emenda à Constituição Federal 20/98 de 16-12-1998.
Sujeitos: Deputados Federais e Senadores


Texto 2 –Orientação e Comentários sobre a Emenda 20/98, da Equipe de Aposentadoria da 39ª SRE/Uberaba amparada em treinamentos oferecidos pela Secretaria Estadual de Administração de Minas Gerais em setembro de 1999.
Sujeitos: Funcionários públicos estaduais do quadro administrativo

É mister destacar que, nesse caso, os responsáveis pela interpretação do documento oficial são funcionários da Secretaria- SEA, que possuem o grau de escolaridade no nível médio e superior, geralmente na área da educação.


Texto 3- Decisão nº 748/ 2000-Tribunal de Contas da União -TCU- Plenário
Sujeitos: Ministros do TCU

É relevante constar que o TCU, através de seus ministros, só se pronunciou nessa decisão por ter sido feita uma consulta oficial pelo Presidente da Câmara dos Deputados, representando essa Entidade.

3- A análise

“O juiz intérprete há de avançar em relação ao texto legal, num sentido que, por um lado, inove a norma legal abstrata em seu sentido (conectando-a com a valoratividade constitucional) e supere a moldura do Direito para adentrar na sua especificidade na realidade social. ”

COELHO ( 2000, p. 131):

Analisaremos as marcas textuais destacadas no texto 1 nos dois textos que o interpretam: A Decisão nº 748/2000 do Tribunal de Contas da União (Texto 3) e outro Comentário da Lei/99, da 39ª S R E, (Texto 2) representando o entendimento da Secretaria Estadual de Administração do Estado de Minas Gerais, que se nos apresentam como pistas lingüísticas que dão margem à configuração do mal-entendido, articulado pelas conjunções: ainda que e apenas; pelo pronome indefinido: qualquer; pelos advérbios: não e antes; pelas locução verbal: é assegurado; pela preposição: até e pela omissão de especificações no texto constitucional.

3.1- Apresentação do caso – Histórico dos textos a serem analisados

§ a) Em 16 de dezembro de 1998, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 20/98 que modificou o sistema de previdência social, estabeleceu normas de transição e deu outras providências. No art. 1º, foram determinadas alterações na redação de alguns artigos da Constituição Federal/88, dentre elas a mudança dos dizeres do parágrafo 10 do art. 40 que passou à seguinte redação:

Emenda Constitucional nº 20, de 1998
Art. 1º ..........................................
“Art. 40 ........................................
§ 10 – A lei não poderá estabelecer qualquer forma de contagem de tempo de contribuição fictício.”

b) Após vários estudos e orientações promovidos pela Secretaria de Administração de Minas Gerais, a equipe da 39ª Superintendência Regional de Ensino de Uberaba, que analisa os processos de aposentadoria dos funcionários públicos da área educacional redigiu, em setembro de 1999, um texto contendo dizeres da Emenda nº 20 e os comentários interpretativos acerca das alterações impostas pela nova redação. Em relação ao §10 foi redigido o seguinte comentário:

Comentário - §10
É em razão deste parágrafo que as férias-prêmio adquiridas antes de 17.12.98 poderão ser dobradas a qualquer tempo, apenas para situações que se enquadrarem no art. 3º desta Emenda.

Art. 3º - É assegurada a concessão de aposentadoria e pensão, a qualquer tempo, aos servidores públicos e aos segurados do regime geral de previdência social, bem como aos seus dependentes, que, até a data da publicação desta emenda, tenham cumprido os requisitos para a obtenção destes benefícios, com base nos critérios da legislação vigente.
A partir desse entendimento, apenas as pessoas que preenchiam os quesitos para se aposentarem antes da publicação da Emenda é que poderiam contar em dobro as férias-prêmio adquiridas até então.

c) No Diário Oficial nº 188, quinta-feira, 28 de setembro de 2000, seção 1 p. 63 a 67, o TCU (Tribunal de Contas da União) publicou análise de consulta feita pelo Presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer (Processo TC nº 007.826/2000-2, juntado: TTC 007.965/20006) a respeito da utilização do tempo fictício e a Decisão nº 748/200 respondendo ao Consulente:

Decisão nº 748/2000 – Plenário

(...)
8. Decisão: O Tribunal Pleno, diante das razões expostas pelo Redator e com fulcro no art. 216, caput e inciso I, do Regimento Interno, DECIDE:
8.1.(...)
8.2. (...) responder ao Consulente que:
8.3.1. para efeito de aposentadoria, com base no art. 8º da Emenda Constitucional nº 20/98, correspondente às regras de transição, ou pelas regras de transição, ou pelas regras gerais estabelecidas no art. 40 da Constituição Federal, é assegurado ao servidor a contagem em dobro de licença-prêmio não usufruída, ainda que ele, na data de publicação da referida Emenda não contasse tempo de serviço suficiente para a aposentadoria voluntária pelas regras então vigentes;
(...)
10. Data de Seção: 13/09/2000 – Ordinária

3.2-Tendências e incompletudes a serviço de determinados interesses: alguns aspectos da realidade na interpretação do texto legal

Ao optar pelo código escrito, o sujeito-enunciador utiliza-se de um tipo de comunicação fora de situação e, por isso, necessita empregar mais amplamente procedimentos de variedade normatizada. Ao passo que, quando a comunicação se processa oralmente, ao apoiarem-se na situação imediata, os enunciadores usam apenas uma parte das possibilidades de que dispõe o sistema lingüístico. Nos enunciados, o locutor conta com a situação imediata do ato de fala e com o contexto lingüístico para efetuar a comunicação.

Os textos apresentados neste artigo como objeto de análise, estão inseridos numa variedade lingüística veicular e codificados por grupos sociais que controlam o poder do Estado e o aparelho institucional. Uma classe social dominante que impõe as suas ordens e possui instrumentos de normatização elaborados pela codificação, dicionários, gramáticas, manuais. Os discursos aqui analisados pertencem à língua de Estado, língua nacional ou língua oficial, ou seja, à variedade padronizada. Tal variedade encontra-se objetivamente associada ao sistema de valores, aos objetivos e aos interesses do grupo ou grupos sociais dominantes.
É efetivamente, nesse quadro, que o fato registrado neste artigo pode ser compreendido como um caso de mal-entendido, por alterar o que, lingüisticamente, encontra-se disposto na lei. Podemos considerar que há tendências, interesses, incompletudes, que podem partir do grau de interesse, de particularismo, que chegam a distorcer os fatos e alterar o dispositivo legal quando, para a atualização do texto ou interpretação do mesmo, o sujeito receptor é lançado em um mecanismo de atribuição de sentido termo a termo. Antes de tal leitura, pelo próprio contexto, o indivíduo, diante da criação de uma expectativa de sentido, especializa a sua procura no nível das informações memorizadas. Nesse contexto, o indivíduo, ao atualizar um texto ou interpretá-lo, por possuir uma certa gama de significados prévios para a leitura, tem a tendência a estender seus “pré-juízos” sobre a mensagem, moldando-a às suas expectativas. Traduzindo, então, pelo preconceito, pelo pré-julgamento, assim como pela dificuldade de registrar exatamente o que significa a mensagem, o seu entendimento do discurso, transformando-o em juízo de valor.

3.3-A significação dos textos legais

Nos textos legais, apresentados neste artigo, há expressões que, de acordo com nosso entendimento, apresentam-se como um problema de grande importância na reflexão sobre a significação, logo, analisaremos as expressões do ponto de vista de sua significação.
Os representantes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, quando afirmam que "A lei não poderá estabelecer qualquer forma de contagem de tempo de contribuição fictício" (§ 10, art. 40, art. 1º, E.C.20/98), sem explicitar a época a ser considerada, as situações antes e depois da Lei, abriram espaços para o mal-entendido, ocasionando dois entendimentos opostos.
Tentando ser impositivos, na sua definição, usaram marcas lingüísticas como o advérbio ''não'' e o pronome ''qualquer'', mas omitiram esclarecimentos importantes para o entendimento efetivo.
Conforme ILARY e GERALDI (1999, p.30) a gramática tradicional sugere algumas expressões negativas, dentre elas o advérbio não, que “é, entre todas, uma das menos confiáveis, pelos equívocos a que dá margem.” O que podemos observar é que logo após a idéia de negação da lei, temos a expressão qualquer que exprime uma generalização que diz respeito à forma de contar o tempo de contribuição ficto, podendo ser explicada assim: é preciso imaginar que haja várias formas de contagem de contribuição do tempo fictício e nenhuma delas poderá ser estabelecida. Há, portanto, uma generalização. Podemos entender também, que a lei não poderá estabelecer qualquer forma de contagem de tempo de contribuição fictício, porque existe apenas uma forma de contagem de tempo ou formas de contagem designadas pela lei. Qual, ou quais são? Dada a maneira como a frase foi construída, a interpretação pode variar.

Pode-se comprovar tal raciocínio pelo fato de que, nesse caso específico, o comentário feito pelo sujeito receptor em um primeiro momento, como já dissemos, indivíduo que, antes mesmo da interpretação do texto em si, já atribui previamente um sentido ao texto (o que não possui um valor negativo intrínseco), o Comentário da Secretaria Estadual da Administração vem afirmar que:
“É em razão deste parágrafo que as férias-prêmio adquiridas antes de 17.12.98 poderão ser dobradas a qualquer tempo, apenas para situações que se enquadrem no artigo 3º desta Emenda”. (Comentário da S E A. / 99).
Segundo VOESE (1998, p.112) “uma das maneiras que a ideologia encontra para homogeneizar o que é descontínuo é desconstruir o que se opõe ao hegemônico através de uma série de recursos discursivos".

A desconstrução do discurso legal, da Emenda Constitucional nº 20, de 1998, dá-se, a partir do comentário que, mais uma vez, generaliza, para, em seguida, particularizar a situação dos que podem ser enquadrados no Art. 3º desta Emenda.
Os recortes realizados e trabalhados no histórico apresentado neste artigo, concedem-nos a visualização de um processo de parafrasagem que busca um sentido, nos operadores argumentativos do Comentário da S E A/99: ''a qualquer tempo'' e ''apenas para'', a coesão necessária para que o enunciado não se negue a si mesmo e, também, obtenha o efeito desejado. Entretanto, há que se considerar que o processo de controle que se tenta fazer através da paráfrase, não consegue limitar a descontinuidade do discurso, porque o locutor, enquanto consciência que age, pressionado pela ideologia, gera, na produção do discurso, uma polêmica, justamente por não fixar um sistema de referência que possibilita a constituição de um sentido por parte do sujeito-enunciante.

Com a intenção de intensificar os efeitos da negação presentes no § 10, os indivíduos que comentaram o texto, ao introduzirem os operadores argumentativos, ''a qualquer tempo'', ''apenas para'' e ''até a'', puderam informar confiando na ''verdade de'' e acreditando que para o seu interlocutor tudo ficaria, após o comentário, muito “bem entendido”. Acontece que, se tomarmos um outro enfoque - o comentário como um mecanismo de atuação no discurso – podemos entender o locutor utilizando as informações para impor ao seu interlocutor um discurso em desenvolvimento e que, ele, devido ao seu poder (de Estado), emprega expressões que, ativamente, impõem limites e direcionam a compreensão. Nesse sentido, tal fenômeno – do pressuposto – segundo Ducrot, é utilizado para configurar atrás de uma informação passada, uma “verdade”.

Assim, DUCROT (1977, p. 87),. define ação: “toda atividade de um indivíduo quando caracterizada de acordo com as modificações que ela traz, ou quer trazer, ao mundo” Nessa medida, o sentido dos enunciados legais analisados neste artigo como a ação que realiza o sujeito com tal enunciado, passa a ter a forma de ato jurídico. Tal ato se caracteriza por transformar as relações legais que permeiam a vida dos indivíduos na sociedade, nele o que “se considera é a transformação das relações legais como efeito primeiro da atividade e não como a conseqüência de um efeito logicamente ou cronologicamente anterior''. Isto significa que a ação de comentar o texto já pressupõe a transformação das relações legais como efeito primeiro e não como resultado de um efeito anterior.

Interessa-nos agora, através da transcrição do § 10 e do comentário sobre o mesmo, mostrar que as duas frases são, quanto ao seu significado, diferentes e verificar que o comentário, ao mesmo tempo generaliza e restringe, respectivamente (qualquer/ apenas), por esse motivo gera incompreensões e chega até mesmo, a prejudicar, por ser um texto legal, o planejamento vital de muitos professores, uma vez que ferem os seus direitos constitucionais.

O Comentário S E A/99 sobre o §10 ainda encaminha para a leitura do Art. 3º da Constituição.

''É em razão deste artigo que as férias-prêmio adquiridas antes de 17.12..98 poderão ser dobradas a qualquer tempo, apenas para situações que se enquadrarem no art. 3º desta Emenda.'' (Comentário ao § 10 da S E A/99)

Cabe, nesse momento, abordar a questão da situacionalidade. Segundo KOCH e TRAVAGLIA (1996, p. 70):


“Sabe-se que a situação comunicativa tem interferência direta na maneira como o texto é construído, sendo responsável, portanto, pelas variações lingüísticas. É preciso, ao construir o texto, verificar o que é adequado àquela situação específica: grau de formalidade, variedade dialetal, tratamento a ser dado ao tema, etc. O lugar e o momento da comunicação, bem como as imagens recíprocas que os interlocutores fazem uns dos outros, os papéis que desempenham, seus pontos de vista, objetivo da comunicação, enfim, todos os dados situacionais vão influir tanto na produção do texto , como na sua compreensão”

O que se pode ler no Art. 3º da Emenda Constitucional 20/98 é que:

Art. 3º- "É assegurada a concessão de aposentadoria e pensão, a qualquer tempo, aos servidores públicos e aos segurados do regime geral de previdência social, bem como aos seus dependentes, que, até a data da publicação desta emenda, tenham cumprido os requisitos para a obtenção destes benefícios, com base nos critérios da legislação vigente.''


Logo, a qualquer tempo é assegurada a concessão de aposentadoria e pensão aos servidores públicos e seus dependentes. A palavra ''até'', definida pelos gramáticos como palavra de relação por excelência, enquanto inserida na oração simples e classificada entre as preposições, aparece no Art. 3º como a preposição que vai marcar a relação de regência entre os servidores públicos e segurados do regime geral de previdência social e a data de publicação. Sem nos preocuparmos com as classificações morfossintáticas de ''até'', mas atentas às condições de uso, podemos perceber a explicitação de um limite imposto no Art. 3º da Emenda Constitucional de 1998.

Dada a importância da adequação do texto à situação comunicativa, é preciso explicitar que, ao construir o texto, o locutor recria, a partir de um outro contexto, e de acordo com seus objetivos, seus interesses, suas convicções, um outro texto, que não é real, por isso, o texto não vai ser exatamente igual, ele vai utilizar referentes textuais que não são os do mundo real, mas são reconstruídos no interior do texto. Assim, a interpretação do texto também se processa de acordo com o conhecimento prévio e interesses do receptor, a razão de haver “sempre uma mediação entre o mundo real e o mundo textual” (Cf. KOCH e TRAVAGLIA, 1996, p. 70).
Ao interpretar os fatos em um texto judicial, como se pode notar a seguir, operações semiológicas se destacam, e, uma vez acionado o aparelho de Estado, como no caso enfocado neste artigo, para a análise feita pelo TCU, a respeito da utilização do tempo fictício, o processo evoluiu de tal modo que a decisão apontada foi:

8.3.1. para efeito de aposentadoria, com base no art. 8º da Emenda Constitucional nº 20/98, correspondente às regras de transição, ou pelas regras de transição, ou pelas regras gerais estabelecidas no art. 40 da Constituição Federal, é assegurado ao servidor a contagem em dobro de licença-prêmio não usufruída, ainda que ele, na data de publicação da referida Emenda não contasse tempo de serviço suficiente para a aposentadoria voluntária pelas regras então vigentes;
(Decisão nº 748/2000- TCU)


Quando o então presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temmer, abriu um processo para consulta ao Tribunal de Contas da União- TCU e obteve essa decisão sobre a possibilidade de se considerar as férias-prêmio em dobro, portanto, tempo ficto, para os funcionários que adquiriram o direito às férias-prêmio antes da Emenda Constitucional 20/98 e não usufruíram, determinou-se a verdade processual, verificando-se que os fatos não se ajustam a qualquer previsão normativa, ou seja, a construção da verdade formal, importância vital para o Direito. Assim, ganhou existência jurídica e a verdade formal apurada no processo, correspondeu ao real. A sentença, portanto, possui um valor efetivo.
No momento em que um tribunal declarou a sentença, não há mais o que verificar, por isso a parte que não consegue demonstrar o seu direito, pode ser vítima de um resultado adverso. Neste caso, podemos verificar que na Decisão nº 748/2000- TCU, é o articulador argumentativo ainda que, o que concede a contagem em dobro de licença-prêmio, sem quaisquer restrições.

Enquanto que, no entendimento dos comentaristas da SEA, é resguardado o direito à contagem de férias-prêmio em dobro com restrições, apenas para quem tinha o direito de se aposentar até 17/12/98, no entendimento da Decisão do TCU é assegurado, ao servidor, a contagem em dobro de licença-prêmio não usufruída, ainda que ele não contasse tempo suficiente para se aposentar até 17/12/98.
O conectivo ''ainda que'' veio dar abertura e ampliar o direito a esse tempo ficto adquirido antes da Emenda Constitucional a ser considerado em qualquer época, desde que não tenha sido usufruído.

4- CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Por mais que o intérprete se esforce por permanecer fiel ao seu ‘texto’ ele será sempre, por assim dizer, forçado a ser livre- porque não há texto musical ou poético, nem tampouco legislativo, que não deixe espaços para variações e nuances, para a criatividade interpretativa. ”
CAPELLETTI (1993, p. 37)

Numa análise que pretende descaracterizar o mal-entendido, provocado, sobretudo, pela escolha lingüística, orientada pelo agenciamento sintagmático de grupos que, de certa forma, estão imbuídos de poder de decisão sobre o destino de grupos maiores, tornou-se necessário evidenciar, pela descrição gramatical da língua, os paradigmas constituídos de elementos de valor essencialmente argumentativo, posto que sua seleção, pelos redatores e analistas do texto da Emenda Constitucional, ou do Comentário, ou da Decisão do TCU possibilitou uma orientação argumentativa capaz de levar o interlocutor a um determinado tipo de conclusão em detrimento de outras.
Perceber, no discurso, que se pretende neutro, o valor argumentativo dessas marcas é, sem dúvida alguma, o primeiro passo para desestabilizar o mal-entendido que nele se apresenta. Assim, concordamos com a tese de DUCROT; ANSCOMBRE (1976) e VOGT (1977) de que as instruções codificadas, de natureza gramatical, estão carregadas de argumentatividade e seu significado se atualiza a partir das estratégias utilizadas para permitir leituras que mascaram, sob a máscara da neutralidade, a intenção de limitar os direitos de uma classe. São justamente os morfemas que a gramática tradicional considera como elementos meramente relacionais e que a semântica argumentativa recupera, por considerá-los marcas lingüísticas importantes, é que vão determinar o valor argumentativo e sem nenhuma neutralidade dos textos analisados. Os efeitos de sentido produzidos nos textos analisados apontam para o fato de que não se limitam, pela própria escolha lexical, aos efeitos de sua orientação argumentativa, ou de seus produtores, posto que ao provocar um mal-entendido, demonstrou, portanto, que sua força argumentativa não é una, nem tampouco uma, pois não apresentou uma leitura única, mas perspectivas conflitantes, quando de sua retransmissão.

Partindo do mesmo § 10 da Emenda Constitucional, o entendimento da S.E.A impediu que vários servidores pudessem se aposentar por não poderem considerar o seu tempo ficto adquirido. É do interesse do Estado evitar, ao Maximo, que haja liberação de aposentadorias.
Há, no Direito Constitucional um princípio geral pelo qual uma lei nova não pode violar um direito adquirido e a redação do §10 , encontrada na Emenda Constitucional nº 20 choca-se frontalmente com o aludido princípio, já que predispõe outra interpretação da lei. Uma vez que o professor e o funcionário público têm o direito adquirido até a data da Emenda, não há como explicar a restrição feita pela Secretaria de Estado de Administração. Leia-se:

Artigo 5º Inciso XXXVI da Constituição Federal - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;

Podemos afirmar, então, que comentaristas do texto legal, fixaram um sentido incorreto e fizeram-no de forma equivocada, resultando disso uma discrepância entre o texto atualizado por eles e o texto original. Há que se observar, todavia, que todos nós temos enfoques pessoais quando se trata do texto escrito, pois os gestos, a entonação e outros elementos extra-lingüísticos, que possivelmente descaracterizariam o mal-entendido, na retransmissão oral, não podem ser evidenciados no texto escrito. Isto não sendo possível, o sujeito, ao escrever o texto, precisa exercitar a sua competência lingüística de tal forma que, ao promover escolhas gramaticais, não produza outro significado, como aconteceu na Emenda Constitucional 20.

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Publicado em:
RIBEIRO, O. M. KAPPEL, I. B. A.; SILVEIRA, M. Construção, destruição e (re) construção do sentido: uma análise do mal-entendido na interpretação de um texto legal.. Revista Jurídica UNIJUS, UBERABA MG, v. 04, n. 01, p. 141-157, 2001.

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