sábado, 19 de julho de 2008

Por que investir em pesquisa qualitativa?


Giacomo Balla.Abstract Speed and Sound,


(...) existem certas inovações fertilizantes que é muito útil conhecer porque podem facilitar o cumprimento das funções universitárias específicas e fazê-las desempenhar um papel de aceleradores intencionais da transformação social.
(RIBEIRO, 1969: 36)

Iniciar um texto citando Darcy Ribeiro incita-nos a pensar a educação com um olhar de antropólogo...
Perfazendo os caminhos pelos quais passou a universidade ao longo de sua história, estabelecemos uma ponte para algumas reflexões que têm ocupado nosso espírito ultimamente: Por que investir em pesquisa qualitativa? Qual o papel da universidade nessa questão? O que de fato representa a pesquisa, no âmbito da universidade?
Dentre as mais diversas funções incorporadas pela universidade desde o seu advento, a mais difundida é, sem dúvida, a de responsável pela universalização do saber. Entretanto, à universidade contemporânea são atribuídas diversas funções, que se modificam conforme o contexto histórico, segundo suas exigências e necessidades imediatas.
A princípio, a universidade esteve ligada à conservação e transmissão do saber acumulado, a serviço da verdade constituída e isenta de incorporar novas descobertas. Hodiernamente, chama a si a obrigação de garantir a universalidade do saber, por meio de uma organização integrada, que deve se fundamentar em bases epistemológicas sólidas, com vistas à criação de centros de excelência ou de especialização, que não primem por limitar o conhecimento a uma especialidade, mas que agreguem também a articulação de outros saberes. Assim, sem deixar de lado o ensino, sua vocação original, a universidade incorporou nessa função as demais funções que lhe são atualmente inerentes, a extensão e a pesquisa. Além de guardar e repassar o saber produzido fora de seu âmbito, a universidade passou a produzir o conhecimento, através de pesquisas, que são devolvidas à sociedade, quer em forma de formação de novos profissionais, quer em forma de extensão universitária, cuja interlocução com a sociedade deve ser o fator preponderante. Conforme destaca GUIMARÃES ( 2000: 81):
(...) ''a extensão deixa de ser mera prestação de serviços à sociedade para ser um órgão vital do preenchimento dos interesses e das necessidades do grupo social, o que a torna uma ferramenta de mudança da sociedade''.

Carlos Rodrigues Brandão com muita pertinência destaca que o trabalho de criar pesquisas, a ação de motivar a pesquisa é que estabelecem o diferencial entre a verdadeira universidade e os colégios superiores.
Uma instituição que almeja o título de universidade ou deseja assegurá-lo deve atentar para esse aspecto. Paulo Freire (1989, p. ) já dizia que “ não há pesquisa sem ensino e nem ensino sem pesquisa”. Devemos seguir a trilha desses sábios educadores, se quisermos alçar vôos maiores, no sentido de sairmos da condição de país subdesenvolvido e alcançar a plataforma de primeiro mundo. Sem pesquisa não há ação que se sustente. É na universidade que se desenvolvem pesquisas. E é a partir das descobertas, ou dos resultados dessas pesquisas que se eleva o padrão de vida da sociedade, quer no plano da educação, da saúde, da tecnologia ou do meio ambiente. SILVA (2000: 62), ressalta que: ''a pesquisa é o esforço humano para descobrir os meandros da realidade como natureza e como organização histórica dos homens em sociedade.''
Quando se fala em pesquisa, fala-se em sociedade e não há como pensar em sociedade sem se considerar os seus aspectos dinâmico e interacional. O homem, parte integrante dessa sociedade, encontra seu habitat entre outros homens, seus semelhantes, que guardam em si a individualidade e a alteridade inerentes à condição humana. Portanto, cada um é um ser individual, dentro de um coletivo que se altera constantemente. Pesquisa-se para aplicar nessa sociedade e pesquisa-se dentro dessa sociedade.
A universidade, que se apresenta nessa sociedade, que não é mais tão somente a guardiã do saber institucionalizado, que pretende se firmar enquanto espaço de produção e difusão do conhecimento, deve adotar a pesquisa como atividade fundamental em seu seio, pois como ressalta DEMO ( 1997: 6) ''o que melhor distingue a educação escolar de outros tipos e espaços educativos é o fazer-se e refazer-se na pesquisa''.
SILVA (2000: 64) corrobora essa asserção quando afirma que a pesquisa se situa no cerne definidor da educação escolar e que, ao sustentar e acompanhar o desenvolvimento do conhecimento, evita que este se esvazie na reprodução iterativa sem força transformadora. Esse educador observa que não há conhecimento que não envolva, de alguma forma, o ato da pesquisa, ponderando que:

''Se historicamente o ato da pesquisa foi se recolhendo aos átrios de grupos seletos de pesquisadores, também historicamente hoje a pesquisa tem seu espaço ampliado pela presença, não apenas nos laboratórios ou no recôndito de alguns intelectuais, mas no cotidiano das salas de aula, na árdua tarefa docente do trato do conhecimento entre os professores e alunos.''
(SILVA, 2000: 64)

Face aos novos paradigmas emergentes numa sociedade em mudança contínua, há que se pensar também em novas abordagens de pesquisa. Há que se fazer um exercício contínuo para uma concepção mais elástica das concepções cartesianas sobre “método”, uma vez que a segurança das compreensões obtidas nas investigações qualitativas radicam-se no pesquisador e no diálogo pesquisador/comunidade.
Na pesquisa qualitativa quem estabelece os parâmetros de rigor não é o método, mas o pesquisador e a comunidade que vai consumir e gerar a pesquisa.
Há que se repensar a concepção positivista, cuja tendência básica é a sustentação de que aquilo que não se conta não se escreve, pois, entender que a medida é uma coisa boa é diferente de afirmar que só é bom aquilo que se pode medir. O próprio Descartes, embora positivista, deu-nos a liberdade de interpretar seus métodos, sem contudo empregá-los de uma maneira absoluta, quando afirma que: '' Se meus escritos valem alguma coisa, possam os que os tiverem [...] utilizá-los do melhor modo que entenderem.'' (Descartes, 1965: 42)
Nossa concepção de ciência tem suas origens na concepção clássica de ciência, que em nome da objetividade e do caráter científico difunde a idéia de que não pode haver afinidade entre pesquisador e pesquisado. Essa mentalidade preconiza o distanciamento. Hoje a pesquisa qualitativa oferece oportunidades de novas interpretações. O investigador e o investigado gozam de paridade no contexto da pesquisa. Todavia não se rompe com os dados quantitativos, mas abre-se caminhos para os sentimentos, as emoções e as interações. Os dados qualitativos e os dados quantitativos são coadjuvantes da mesma cena. Não se pode negar totalmente o quantitativo. Contudo não se pode tratar do assunto apenas como um aspecto semântico, a questão não é somente de substituição de números por palavras.
Na pesquisa sociolingüística interacional, por exemplo, a descrição etnográfica, cujo objetivo central é documentar e analisar aspectos específicos do processo comunicativo ( verbal e não- verbal) e contextualizar esse processo no grupo social em que ele ocorre, caracteriza-se por ser uma metodologia qualitativa por excelência, conforme afirma BORTONE (1996 a: 390):

"O argumento central da pesquisa reside no fato de a identidade social e étnica ser em grande parte estabelecida e mantida pela linguagem. Isto se deve não só às características históricas e ideológicas através das quais os grupos são estruturados, como também pelos símbolos e identidades criados que modelam e direcionam as formas discursivas que estão sendo analisadas."

A focalização da análise etnográfica está na situação de uso, nos hábitos diários e sistematizados e na organização lógica e comportamental deste uso. Assim, a coleta de dados e sua análise se complementam mutuamente. ( BORTONE: 1996 b: 24)
Tanto a sociedade para a qual se pesquisa, quanto a universidade na qual se desenvolve a pesquisa são formadas por seres humanos, não são números estatísticos simplesmente, mas seres que se interagem e se modificam a despeito de um quociente frio. Ao contrário do que pensam os positivistas, cartesianos mais ortodoxos, a pesquisa qualitativa não acaba com a veracidade dos fatos, contudo ao evidenciar as emoções, descortina novos rumos apontando para o mais próximo possível da realidade. O lugar dos resultados da pesquisa não é mais o gráfico e a tabela, mas o próprio homem. Aquele que desencadeia, realiza e se serve da pesquisa.
O ser humano não é um ser compartimentado e não pode estar enquadrado em simples dados com comprovação aritmética ou tabulado como um elemento neutro.
SILVA (2000: 62) enfatiza que a sociedade atual, em contínuo processo de transformação e dominada pela força globalizante, cuja necessidade está voltada para a atividade de pesquisa marcada pela práxis humana plena de significados e de interpretações teóricas, exige que se repense os caminhos da pesquisa, para que se estabeleça também a natureza e a função social da Educação Superior no Brasil. Para esse educador é fundamental que o conhecimento teoricamente elaborado se interponha à prática empírica, pois ''a pesquisa puramente empírica, que se volta e se esgota nos dados, não tem condições de se afirmar no universo científico''.
Segundo THIOLLENT (1986:31) a Pesquisa-Ação é um tipo de pesquisa social organizada de modo participativo, com a colaboração de pesquisadores e de membros do grupo implicados em determinada situação ou prática social, de modo a identificar os problemas e buscar soluções.
Para esse pesquisador, divulgador da pesquisa participante, a idéia é simples: esse tipo de pesquisa visa a mobilizar pesquisa à ação apontando seus efeitos para pesquisador e pesquisado. Assim, rompe com o behaviorismo e incita o pesquisador a sair do laboratório, a buscar outros campos.
THIOLLENT enfatiza que para a Pesquisa-Ação acontecer deve haver uma intenção de pesquisar e uma vontade de mudar, devendo ter um objetivo duplo: resolver problemas dos usuários e fazer progredir os conhecimentos fundamentais. Seus resultados devem estar voltados para os modos de resolução de problemas concretos encontrados no decorrer da realização do projeto; os conhecimentos devem estar validados pela experimentação durante a Pesquisa-Ação e voltados para a formação de uma comunidade com capacidade de formular novos questionamentos para pesquisa e estudos.
Há que se salientar que a pesquisa qualitativa encontra respaldo na comunidade científica internacional e encontra apoio nos novos paradigmas de ciência, além de oferecer soluções mais adequadas aos usuários nas áreas técnicas, destacando-se o fato de que por meio da pesquisa é possível rever o novo papel da universidade. Por outro lado os críticos da Pesquisa-Ação salientam que falta rigor e precisão de método, que existe a possibilidade de se confundir ciência com cultura popular, de criar uma falsa expectativa e ainda que corre-se o risco de veicular a ideologia do pesquisador.
É possível que esses temores venham a se concretizar, se não existir uma ética que conduza os rumos da pesquisa e norteie as ações do pesquisador. Entretanto, é mister observar que essas ressalvas também cabem em uma pesquisa de concepção positivista. Se falta ética a um pesquisador cartesiano, também esse pode adulterar ou manipular resultados ao sabor de sua ideologia.
O que ocorre de fato é que a Pesquisa Ação incomoda a um grupo. Incomoda ao grupo que monopoliza o saber, que não tem interesse em dividir o conhecimento com os atores. Incomoda àqueles que só entendem como ciência o que é feito em um laboratório, isolando e quantificando dados.
Se pensarmos a educação como um processo que promove a mudança de mentalidade, compreenderemos a necessidade de participarmos como sujeitos dessa mudança, não como um número tabulado, mas como agente de transformação, pois ''nada se faz entre os homens sem a consciência e o trabalho dos homens, e tudo o que tem o poder de alterar a qualidade da consciência e do trabalho, tem o poder de participar de sua práxis e de ser parte dela.''. BRANDÃO ( 1986: 82).
Uma universidade que faz jus ao título não pode tão somente adotar o ensino como função preponderante, mas deve chamar a si a responsabilidade de desenvolver e estimular a pesquisa não só junto ao seu corpo docente e de pesquisadores, mas sobretudo com seu corpo discente, abrindo espaços para a pesquisa qualitativa, pois é a partir da pesquisa participante que o Ensino Superior adota uma força pedagógica capaz de superar a mera transmissão de conhecimentos fazendo com que o aluno seja protagonista de seu saber.
Há que se concluir com BRANDÃO (1986: 78) concordando que:

‘’A idéia de que a educação não serve apenas à sociedade, ou à pessoa na sociedade, mas à mudança social e à formação consequente de sujeitos e agentes na/da mudança social, pode não estar escrita de maneira direta nas ''leis do ensino''. Afinal, as leis quase sempre são escritas por quem pensa que nem elas nem o mundo vão mudar um dia.''

Daí a grande importância de se estimular a pesquisa qualitativa na universidade. Daí a urgente necessidade de se implementar a ação de ''aprender a aprender pesquisando'' , entre docentes e discentes.
Encerrar este texto citando outro antropólogo instiga-nos a pensar a educação como um caminhar do homem, sobre o qual este traça o seu futuro, tendo como bússola a pesquisa, da qual é participante e sem a qual a universidade se perderia. E assim, ousamos parodiar BRANDÃO afirmando que: as pesquisas não mudam o mundo. As pesquisas mudam as pessoas. As pessoas mudam o mundo.

Referências

BORTONE, Marcia Elizabeth. Comunicação interdialetal: um retrato de diversidade culturais. In: MAGALHÃES, I. (Org.) As múltiplas faces da linguagem. Brasília: UnB, 1996. p.387-399.
____Língua e identidade social. Letras. Campinas, v. 15, nº 1 e 2., p. 22-42. dez., 1996.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. 18 ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.
DEMO, Pedro. Educar pela pesquisa. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 1997.
DESCARTES, René. Discurso do Método. Traduzido por João Cruz Costa. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1965.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo, Cortez, 1989.
GUIMARÃES, Marisa. Rocha. A universidade e suas funções. Ícone. Uberlândia, v. 6, nº1, p 75-84, 2000.
RIBEIRO, Darcy. A universidade necessária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.
SILVA, Jeferson. Idelfonso. O espaço da pesquisa na comunicação e apropriação do conhecimento. Ícone. Uberlândia, v. 6, nº1, p.61-66, 2000.
THIOLLENT, Michel. Jean-Marie. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 1996.

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