segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

A Arquitetura da Realidade: Espaço e Criação, Linguagem e Gênesis


A condição Humana- Magritte



Profa Dra. Ormezinda Maria Ribeiro-Aya


Resumo: Este ensaio tem como tema a construção da realidade enformada em linguagens, apres

entando a prática cultural como a responsável por essa arquitetura e a própria Arquitetura como um símbolo desse processo contínuo de produção e reprodução de símbolos, estereótipos e conhecimentos regulados por uma interação de práticas, percepção e linguagens.

Resumen: Este ensayo tiene como tema la construcción de la realidad conformada en lenguajes, presentando la práctica cultural como la responsable por esa arquitectura y la propia Arquitectura como un símbolo de ese proceso continuo de producción y reproducción de símbolos, estereotipos y conocimiento regulados por una interacción de prácticas, percepción y lenguajes.


“O espaço não está em lugar algum. O espaço está em si mesmo como o mel no favo.”
Joë Bousquet


Todo o campo do saber humano, seja ciência ou ficção é perpassado por uma linguagem. E é a linguagem que constrói a realidade embora a julguemos sua geradora. Numa perspectiva fenomenológica não é impróprio repetir Merleau-Ponty (1945): “O olho que vê o mundo é o mundo que o olho vê”. É inconcebível, portanto, um mundo desprovido de linguagem. Há mundo, porque há linguagem. Ecoamos aqui a figurativização bíblica no Livro de Gênesis, quando, pela palavra, Deus criou o Céu e a Terra e tudo o que neles se contém. E nessa evocação simbólica não é demais lembrar que a Terra, sem forma e vazia, foi “construída” por uma evocação sonora e tudo o que nela se fez formou-se a partir da palavra. Ora, a palavra é um símbolo e como símbolo representa, então podemos inferir que a expressão do símbolo criou uma realidade. E assim tem sido desde Gênesis.

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Essa afirmativa pode soar inconsistente e entendida como uma crença a um discurso religioso sem amparo científico, por isso tentaremos legitimar essa tese apoiando-nos na história do pensamento lingüístico, remontando às reflexões socráticas acerca da relação entre nome e coisas, que certamente nos remeterá à noção de uma realidade “fabricada”, também implícita na concepção platônica de linguagem.
Em Platão lemos que a língua constitui um recorte da realidade, que é, na compreensão desse filósofo, fabricada por nossa percepção. Avançando na história dos estudos lingüísticos reportamo-nos ao mestre Saussure (1974, p. 15) que nos assegura que não é o objeto que precede o ponto de vista, contudo, é o ponto de vista o criador do objeto.
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Schaff (1974, p. 146) reitera essa concepção quando afirma que o modo de percepção humano está indissociavelmente ligado à maneira de falar e historicamente ligado a uma práxis social, construída nas relações em comunidade. Schaff (1974, p. 223) fala também dos “óculos sociais”, os modelos ou padrões perceptivos, com os quais os indivíduos enxergam o mundo. São os nossos estereótipos. Por eles vislumbramos uma “realidade” que nos parece ser real. Fabricamos, portanto, uma realidade e acreditamos vê-la com os nossos olhos, ou com os olhos sociais e assim seguimos o itinerário iniciado em Gênesis e “quanto mais avançamos no processo de socialização, mais os códigos verbais se apropriam de nosso sistema perceptual”, afirma Blikstein (2000, p.66-7). Rumo ao apocalipse, seguimos fabricando novos signos e novas realidades. Somos o que diz Foucault (1995) o resultado dos discursos que nos constroem.
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Nesse universo construímos também nossas casas e desenhamos nessa realidade novos e inusitados espaços. E com o poder do olhar humano, com uma percepção fenomenológica organizamos nossa arquitetura. E se entendemos, como Eco (1987, p.187), que a arquitetura é um fenômeno de cultura e como tal se baseia num sistema de signos, então, como signo, podemos inseri-la num espaço de criação que se forma a partir de um olhar, de um ponto de vista, ou com os “óculos sociais” de Schaff.
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Nossos espaços arquitetônicos oscilam entre ausências e exageros. Há sempre faltas e sobras e os momentos de equilíbrio entre uma coisa e a outra são raros. Mas a casa, nos diz Bachelard (1984, p. 200),“é nosso canto do mundo”, “é nosso primeiro universo”. Sem a casa, o homem seria um ser disperso, assegura-nos esse fenomenólogo, em sua poética do espaço, para quem o referente “casa” está embutido de verticalidade e de uma centralidade, que mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida.

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E em Bachelard (1984, p. 203) buscamos sua poética para reafirmarmos o que antes tentávamos dizer por uma linguagem mítica, ou apoiando-nos no discurso da ciência:
E todos os espaços de nossas solidões passadas, os espaços em que sofremos a solidão, desfrutamos a solidão, desejamos a solidão, comprometemos a solidão, são em nós indeléveis. E é o ser precisamente que não quer apagá-los. Ele sabe por instinto que os espaços da sua solidão são constitutivos. Mesmo quando esses espaços estão para sempre riscados do presente, estranhos a todas as promessas de futuro, mesmo quando não se tem mais nenhum sótão, mesmo quando a água-furtada desapareceu, ficará para sempre o fato de termos amado um sótão, de termos vivido numa água-furtada.

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O animal, que nem cria cultura, nem precisa de escola, não edifica sua casa segundo uma realidade construída. Suas casas apenas denotam abrigo, desde a era primitiva até a atualidade e não espelham nada além disso. A casa do homem, ao contrário, conta sua história através dos tempos e espelha a realidade intrínseca na cultura a que o homem está imerso constitutiva e constituinte de símbolos.
A capacidade de simbolizar e de produzir símbolos é que faz a diferença entre o animal e o humano, e é o exercício da faculdade de simbolização que cria a cultura que, ao ser reproduzida na práxis social, reflete e refrata uma realidade construída pelo homem.

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Construímos nossos signos e construímos com eles nossas “realidades”, nossos espaços e neles habitamos. Coincidentemente, (ou não?) nossos signos são fabricados segundo uma ideologia e nossas casas se parecem com o modelo projetado pelo olho social.
Se construímos nossa realidade e nossos signos num processo cíclico de reprodução da práxis, somos essencialmente o que as lentes do mundo refletem e refratam em nós. Enxergamos o mundo, ou a “realidade” conformada no mundo, com as lentes desse mundo. Nossas habitações são o exemplo de nossas representações sociais.
Aqui arquitetura e lingüística se confundem: nossas edificações falam por nós. Os reis moram em palácios, os simples em choupanas. Há aqueles que não têm nem eira, nem beira e ainda os que têm tribeira. Mas todos guardam dentro de si um estereótipo de uma casa que tanto pode denotar abrigo, como conotar lar, família, fraternidade...

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E as salas-de-aulas que habitamos como estudantes e/ou como educadores? Como signos reveladores são dimensões interindividuais ou agenciadas em e como uma determinada cultura que nos cria, recria e molda com poderes muito maiores do que podemos suspeitar. Existem desequilíbrios muito grandes e muito curiosos. Existe aí algo semelhante à desproporção entre um espaço arquitetônico e outro dentro de um mesmo campus. Seriam realidades também criadas pelo olho que vê esse mundo? Ou seriam forjadas sutilmente em nossas concepções, como um quadro de paisagem para não abrirmos a janela?

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Ora, nessas edificações encerramos pessoas, com olhos de ver o mundo, com óculos sociais e irremediavelmente expostas à gênesis cotidiana. Nossa impostação semiológica reconhece, como quer Eco (1987, p. 196), que no signo arquitetônico há, como no signo lingüístico, “a presença de um significante cujo significado é a função que ele possibilita”.

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Os signos arquitetônicos são constituídos por significantes descritíveis e catalogáveis, que podem denotar funções precisas se os interpretarmos à luz de determinados códigos, que por sua vez podem ser preenchidos de significados sucessivos tanto por via conotativa, quanto denotativa, com base em outros códigos. No sentido dado por Eco (1987, p. 198), “o objeto arquitetônico denota uma forma do habitar”. Um objeto arquitetônico, nos diz Eco (1987, p.202), pode denotar a função ou conotar certa ideologia da função, mas pode também conotar outras coisas.
Uma sala de aula com púlpito e tablado podia, num passado muito recente, em termos de história da educação, denotar uma verticalização na relação professor-aluno, relações rígidas de saber e poder, mas hoje pode conotar muito mais a possibilidade de interação entre um grande grupo.

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A construção de salas espaçosas e verticais, com um pé-direito duplo, e um pórtico imponente podia conotar a magnitude das universidades e de seus fins, hoje pode denotar inadequação e distanciamento nas relações aluno-professor.
Pensemos que desde tempos imemoriais já se fazem leituras conscientes ou inconscientes desses símbolos arquitetônicos que circundam nosso universo e se compõem nos espaços que provisoriamente, ou por boa parte de nossas vidas habitamos.
Esses signos, nossas habitações provisórias, mas que nos abrigam por longos períodos, ainda que a idéia de longo seja construída em nossas idiossincrasias, são representações de nossos desejos e sensibilidades que vão além de si mesmos, e constroem assim a sua a face de identidade e realização ou são reflexos e refrações de projeção social?

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Numa perspectiva culturalista, que combina sociedade, cultura e linguagem e que não acredita na existência de um sujeito soberano e de uma verdade a ser alcançada e entende que se deve enfatizar a provisoriedade das múltiplas posições em que somos colocados em função das múltiplas mudanças discursivas que nos constitui, inferimos que a linguagem arquitetônica que nos cerca compõe-se dos múltiplos olhares sociais, das lentes que muitas vezes nos são impostas como um olho mecânico, até para quem não é sequer míope.
É possível, nesse simulacro da caverna, cuja luz nos apresenta ao fundo, quando pensamos que sua claridade nos cegará, quebrar essas sombras que vislumbramos como realidade?

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Se entendermos que a linguagem não é só reflexo, reprodução ou reiteração da práxis, mas que ela pode também desenvolver uma ação dialética e criativa, de forma a desagregar os estereótipos de nossa percepção, podemos inverter a posição do quadro: deixar a moldura lá fora e trazermos a paisagem para a sala. Em outras palavras: a arquitetura da universidade, ou de qualquer espaço habitado para a prática pedagógica pode sim ser transformada ou recriada pela ação da palavra que se faz criadora. E nessa gênesis transgressora, o verbo pode iluminar.
A linguagem que usamos para ler o mundo determina, em grande medida, a forma como pensamos e agimos no e sobre o mundo, uma vez que não existe uma realidade fora da linguagem e dos signos. A linguagem e os signos são constitutivos da realidade. Assim, não existe lugar para uma perspectiva que pretenda enxergar além da aparência do discurso. A aparência é a própria realidade, manifesta em discurso.
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Entendendo que, na linguagem, produzem-se compreensões particulares do mundo, isto é, significados particulares. Tal significado é sempre construído, produzido, de forma contextual, no interior de práticas determinadas. Se as práticas sociais são pontos de criação de signos específicos, então a atividade semiótica é produtiva, não uma distorção ou reflexo de uma realidade material que está situada em outro lugar.
Assim, reportemo-nos a Demo, (2002) quando nos diz que "História e cultura oferece-nos contexto intrínseco da linguagem e interpretação". E, mesmo se tomarmos a cultura em suas diferentes concepções e sentidos, podemos reconhecer que cultura é muito mais um sistema de símbolos e significados pelo qual pessoas e grupos humanos se comunicam e dão sentido ao que sentem, ao que pensam e ao que fazem, do que sistemas de práticas dirigidas à manipulação produtiva da natureza e à ordenação pragmática da vida social. (LARAIA, 1997, p. 60-65)

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Sendo assim, a educação e seu simbolismo são motivados pela cultura e dela se abastecem, pois tanto a história, quanto a educação se compõem de símbolos e geram símbolos que se reproduzem no seio da comunidade na e pela cultura. Ora, essa cultura, simbólica, alimentada pela educação, formal ou não, e projetada na história, é materializada pela linguagem. E numa eterna gênesis criadora segue produzindo símbolos que representam outros símbolos e assim sucessivamente como apregoa Nietzche, para quem a linguagem faz sempre o movimento escavador, ad infinito.
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Arquitetura é linguagem e em toda linguagem há uma arquitetura, no sentido de criação. Arquitetura é símbolo, pois como linguagem não é por si, mas representa. E ao representar cria e recria como reflexo e refração de uma cultura, de um processo constante e contínuo. Arquitetura é, pois, gênesis, e, como tal pode subverter modelos, despir dos óculos sociais que nos fazem enxergar apenas silhuetas nas sombras de nossas projeções de realidade.

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REFERÊNCIAS

BACHELARD, G. A poética do espaço. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
BLIKSTEIN, Izidoro. Kasper Hauser. Ou a fabricação da realidade. São Paulo: Cultrix, 2000.
DEMO, Pedro. Complexidade e Aprendizagem. São Paulo: Atlas, 2002.
ECO, Umberto. A estrutura ausente.São Paulo: Perspectiva, 1987.
FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: Rabinow, P; Dreyfus Rabinow, Hubert. Michel Foucault. Uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
LARAIA, R. Cultura. Um conceito antropológico.11 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
MERLEAU-PONTY, M. Phénomenologie de la perception. Paris: Galimard, 1945.
SAUSSURE, F. de. Curso de Lingüística Geral, São Paulo, Cultrix, 1974.
SCHAFF, A. Langage et conaissance. Paris: Antropos, 1974.

Artigo Publicado originalmente na Revista Art & Educação em 2004.

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