segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Português de estrada


Ormezinda Maria Ribeiro- Aya é Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela Unesp. aya_ribeiro@yahoo.com.br

Ele era Jacinto Leite Aquino Rego. Caminhoneiro. Vendedor ambulante. Solteiro. Vinha de Jurupita do Oeste, terra onde abunda a pita Estava de olho na rica viúva Maria Joaquina Rua dos Santos Gomes de Sá. Ela gostava de ser chamada pelos empregados por Sá Quinha. Pelos mais íntimos preferia ser tratada apenas por Quinha. Os desafetos criticavam, diziam que ela tinha um nome estranho. Ao que ela retrucava "Não penso nunca nisso". Já que tinha resolvido, seria essa sua alcunha. O falecido marido punha a culpa nela: “Você tinha que prestar mais atenção. Os filhos seriam criticados na escola. Ou se esqueceu que não é mais sozinha? Faz escolhas e os outros ficam como herdeiro". “Claro que não”, retrucava- “nunca minha mãe me disse isso”. O marido morreu pouco tempo depois. Há anos atrás. Sá Quinha ficou só. Os filhos, Cafu e Neneca, já estavam criados e não se importariam com esse apelido. Mas difícil mesmo era educar esses garotos. Era preciso ter fé demais! Era chegar em casa e ela tinha mil pias cheias de louças para lavar. Não ficava nem o aparelho de socar alho a salvo das mãos dessas crianças crescidas. E a coitada pouco tempo tinha. Dia desses, entrou em seu quarto e o que viu: uma caca enorme em cima da cama. “Oh! Não!” Exclamou! “Felizes deviam ser Eva e Adão quando não tinham filhos”. “E nem caminhão”, explodia Aquino Rego! “Eu amo ela” dizia a toda vizinhança, mas ela parecia não se importar. Sua vida não era fácil. Um dos filhos era míope, olho torto. Não conseguia ver direito o Bloco “H”, bem ali na sua frente. “‘Alma minha’, por que não comprei óculos fundo de garrafa para esse garoto?” Dizia consigo mesma: “ele iria parecer um sapo, tá certo, mas não faria tanta confusão”. Outro dia Sá Quinha me convidou a sua casa e me confidenciou suas dificuldades com as levadezas dos meninos. “Minha cara Elisa, na ótica minha, esses meninos estão carentes e precisam de atenção”, me dizia preocupada. Mas na prática dela, por razões que eu não compreendo, faltava a aceitação do que é ser criança.  Quando entrei na cozinha, topei dando, com a vara de tocar gado, o Cafu, no alto do armário, para alcançar uma bola. Neneca pediu a bola e Cafu deu. Essa doeu! Caiu em sua cabeça e rolou pela dama da noite. Chuta Neneca. Pediu Cafu. “Chuta Neneca, gol”. A bola cai na moita e por cada flor derriçada que no cume cheira, Neneca ia levar uma surra da Sá Quinha. Ele iria apanhar com a boneca dela, mas o “M.J. Gonzaga de Sá", primo de sua mãe, o salvou da bordoada. Rolando Caio da Rocha, dono da plantação, que nunca gostou desses pestinhas, muito aborrecido, ordenou a seu capanga Celso Pita que desse uma sova cada vez que visse o garoto rondando a casa dele: “Dê cá Pita. É agora ou nunca garoto levado!”. E isso via o paraninfo dela, Armando Nascimento de Jesus. “Só Pita pode conter essa molecada”- suspirava aliviada Sá Quinha”.  Estava armada a confusão: Um triângulo amoroso entre Celso Pita, Aquino Rego e Sá Quinha. “Cheguei há pouco de fora, mas vi ela primeiro e já peguei amá-la”. Por que não posso amar ela? Quero amá-la, dizia o caminhoneiro com seu português de estrada. “Não toca nela”. Gritava Pita, mostrando uma mão, num gesto brusco, que exaltava o físico dele. Tome já! Ele não se safa não! Venha cá, gatona! Vou-me já daqui contigo” “Ele está louco de ciúmes” esbravejava Jacinto Leite. Foi o bastante para Sá Quinha perder a paciência e despachar os dois. Sá Quinha não era mulher que se disputa. Isso não! Não uma mulher como ela!  A história com esses dois já havia dado o que falar na cidade. Naquele tempo tinha muita mulher fofoqueira. “Não volte nunca aqui”. Gritou. Triste, desiludido, sem outra opção, Jacinto Leite,  com a sensação de quem nunca ganha,  entra em seu caminhão e volta a dirigir pelas ruas da pequena cidade, bradando em seu alto falante: “Ovo e uva boa! Só caqui a preço de custo...O resto em promoção: Palha, aço... Aquino Rego a sua disposição... “Ovo e uva boa!”



O cacófato é um jogo criativo com a linguagem, pode parecer descontraído, quando aparece nas brincadeiras verbais do colégio e nas piadas sutis dos grandes humoristas. Com o propósito de provocar o humor, o que poderia ser um defeito converte-se em uma virtude, mas deve ser evitado em situações mais formais, principalmente em texto escrito.
A intenção desta colunista foi brincar com os nossos descuidos verbais. Esse texto não passa disso...



Publicado no Jornal de Uberaba em 13-01-2007.

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