segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Escravo ou senhor da palavra?


Somos criatura, criadores e escravos da palavra. Criamos e nos cercamos dos espaços que se organizam pela palavra. E não devemos nos esquecer de que só existimos porque existe a palavra. Assim como há mundo, porque há linguagem. Ora, a palavra é um símbolo e como símbolo representa. É porque existe a palavra, é porque existe a linguagem e é porque sempre pode existir um arranjo de símbolos que se entrelaçam até se fazerem textos, material simbólico, do qual somos filhos e servos é que nós, metáforas de nós mesmos, existimos. A capacidade de representar as coisas por meio das palavras distingue radicalmente o homem do animal, pois dá ao homem o controle do mundo. Aprender a falar é, pois, aprender a pensar.

O domínio da língua é instrumento de controle. A história nos mostra isto: dominantes e dominados se distinguem pela língua que prevalece. Imersos nesse universo que se move pelos símbolos estamos todos e, mais ainda, quando cremos na força da própria palavra persuasiva da qual se apropriam os seus grandes buriladores, os publicitários, jornalistas, vendedores de idéias e ampliadores do mundo, vivemos o século da comunicação. Os grandes mercadores de palavras são hoje os profissionais mais bem remunerados, mais requisitados no mercado, no mundo comercial e político. Ganham-se eleições e vende-se o insólito.

Criam-se heróis, geram-se imperadores e salvadores da pátria, defensores do universo... Pela urdidura da palavra. Se pela manipulação da palavra tecida e entretecida nos envolvemos num movimento de teia que nos enreda em seu centro, e se somos o que diz Foucault, o resultado dos discursos que nos constroem, é também pela desconstrução da armadilha da palavra que podemos alcançar a liberdade. Tudo aquilo que pensamos e fazemos é fruto dos discursos que nos constroem, como seres psicossociais. Somos moldados por uma série de discursos: científico, jurídico, político, religioso, do senso comum, etc. Desses, o mais significativo é o discurso de senso comum, pois se trata de um discurso que permeia todas as classes sociais, formando a chamada opinião pública. Saber argumentar, portanto, não é luxo, é necessidade.

André Breton questiona se não seria o fato de não saber argumentar uma das grandes causas recorrentes da desigualdade cultural, que se sobrepõe às tradicionais desigualdades sociais e econômicas reforçando-as. Nesse sentido cabe uma pergunta, mais constatativa do que interrogativa: não saber tomar a palavra para convencer não seria, no final das contas, uma das grandes causas da exclusão? Assim, argumentar apresenta-se como um verbo essencial numa sociedade que se pretende democrática. E isso não é novidade. Os antigos romanos, inventores da república, buscaram dos gregos antigos a concepção de cidadania e compreenderam bem o caráter capital da argumentação, pois fizeram dela o núcleo definitivo de todo ensino e o fundamento da democracia.

Mas, alerta-nos André Breton, o exercício de uma argumentação cidadã é, ao mesmo tempo, desviado pelas trágicas possibilidades de manipulação da palavra. Diante de tantos discursos, tendo como alvo uma população despreparada, resta-nos torcer para que o discurso do senso comum não tenha prevalecido e que nossos representantes eleitos dêem crédito a uma educação que retome o sentido da argumentação para o exercício da verdadeira democracia.

Ormezinda Maria Ribeiro- Aya é Doutora em Lingüística e Língua Portuguesa pela Unesp. aya_ribeiro@yahoo.com.br


Publicado em: www.jornaldeuberaba.com.br

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