segunda-feira, 29 de dezembro de 2014


“É erro do indivíduo crer que é um ser isolado; em cada pulsação de nossa vida bate, assim, psíquica, como fisicamente, a vida em comunidade. “
(PAULO NATORP 1854-1924)


Devagar se vai ao longe. Foi com esse provérbio que iniciei minha primeira aula no segundo ano do Curso de Magistério em 1997, quando tomei posse como professora de Língua Portuguesa e Literatura na Escola Estadual “Aurélio Luiz da Costa”. Diante do olhar assustado de 50 futuras professoras, minhas alunas na disciplina Língua Portuguesa, incitei-as a escrever uma narrativa que fosse adequada a esse dito.

Lembro-me com um misto de saudade e de satisfação que essa foi a minha aula inaugural em uma instituição de educação que me recebeu com carinho e afetividade, e que se impregnou em mim, bem mais do que muitos dos estudos que fiz para ser e continuar sendo professora. Dois anos depois fui convidada para ser a madrinha da última turma de magistério formada por essa escola.

Sempre acreditei que a escola não é o lugar do ensino, mas o lugar privilegiado das trocas, pois ensinar não é meramente passar conhecimentos, mas mediar construções de aprendizagem nas e pelas relações. Cada um tem o seu tempo de aprendizagem. E como professora, numa época em que os conflitos e ideais profissionais se chocavam com políticas educacionais nem sempre pautadas nesses ideais, encontrei na escola “Aurélio” um espaço de liberdade, no qual pude atuar profissionalmente colocando em prática tudo aquilo que acreditei como profissional da educação.

Em minhas aulas, na Escola “Aurélio”, pude exercer não só o magistério de Língua Portuguesa e Literatura, para o qual foi concursada, e, por uma feliz opção, nessa instituição, lotada. Conscientemente, e com o apoio das equipes dirigentes, com as quais trabalhei no período de 1997 a 2002, pude tratar das questões da Língua Portuguesa como exercício de cidadania, de profissionalismo, de respeito ao educando e às suas potencialidades, na busca de sua criatividade encoberta.

Os alunos das diversas turmas que tive, durante meu tempo como professora nessa escola, podem, de fato provar a veracidade da cultura popular. Muitos deles estão cursando a Universidade, quase a maioria está exercendo uma profissão digna e contribuindo para a sociedade em que vivem. Como ecoa o hino da Escola, cuja letra foi composta pelos próprios alunos, durante nossas aulas de português, nessa escola formam-se alguns gênios, mas muitos e bons cidadãos.

Confesso que sinto um orgulho inenarrável, ou difícil de exprimir por palavras, em ter feito parte do corpo docente dessa escola, da qual sempre me refiro como integrante, ainda, apesar de estar afastada temporariamente, assim quero crer.

A verdadeira, e mais fecunda formação é adquirida quando o sujeito assimila os bens culturais mediante um esforço ativo, no qual toma clara consciência dos objetivos e resultados de sua ação, quando realiza um esforço por si mesmo, destinado à produção seja espiritual ou manual. Nessa escola pude viver de fato essa concepção, pois me senti aceita e integrada ao grupo. E isso fez a diferença em minha ação: pude escolher entre ser uma ministradora de aulas, aquela que cumpre os programas e calendários exigidos pela direção, ou entre ser uma educadora com liberdade e autonomia para exercer a profissão. Escolhi a segunda, porque encontrei sintonia no espírito dos gestores dessa escola.

Nessa escolha, apoiei-me em Sartre, quando esse filósofo, em sua Pedagogia Existencialista, dizia que a existência ou vida humana é, em primeiro lugar, atividade, ação. Existir é escolher entre diferentes propósitos ou objetivos; é ir-se fazendo o homem a si mesmo. A existência não é um estado, mas um permanente vir-a-ser.

O homem é livre para escolher, mas dentro de determinadas circunstâncias. E mais: deve decidir-se a fazer algo em cada instante da vida, e decidir-se é limitar-se.

A liberdade é pressuposto ontológico de seu crescimento integral, o qual há de ver-se à luz de seu destino pessoal. O educando é o criador de sua essência, tem de incumbir-se de si mesmo. O educador, por seu turno, é apenas um suscitador do eu: quem desperta o aluno para a consciência da responsabilidade, da finitude, da morte, mediante uma sustentada preocupação consigo mesmo. O educador não modela a criança e o jovem, pois não pode decidir sua essência; mas terá de incitá-lo em benefício de sua autenticidade e originalidade pessoais.

Mas, para isso, é preciso um ambiente educacional no qual, pela satisfação de ser e de realizar-se, esteja garantida aos parceiros da educação a condição e a liberdade de escolher. A realização da pessoa é mais fácil na confiança, na estima, na segurança de sentir aceito e compreendido.

Educar na liberdade supõe novas estruturas educacionais, inter-relações pessoais mais ricas, formas inovadoras de percepção, participação e expressão. São essas estruturas que constituem a meta fundamental de uma educação cidadã.

Esse espaço encontrei na escola “Aurélio”. Tive a liberdade de escolher entre continuar a repetir os velhos modelos, a reforçar a submissão, a memorização e o treinamento, ou optar por conduzir meus alunos à descoberta do conhecimento, a partir da interação e da comunicação, tornando- os livres do jugo da imposição, da massificação e levando-os a se tornar senhores de seu próprio conhecimento, agentes e produtores de seu mundo e não meros repetidores de ações preestabelecidas.

Nessa escola pude buscar, acima de tudo, novos conceitos sobre educação, sobre cultura, sobre o que é ser educador, sobre o que é ser educando, saindo do preciosismo das teorias, para a boniteza da prática vivida e sentida, em co-participação ...

Nessa escola pude retirar os entraves para a expressão, para a criatividade e para a criticidade. E no meu cotidiano como professora constatei que o conhecimento é a própria arquitetura do pensamento que é vivenciado ao ser construído e é construído ao ser vivenciado.

Todavia, hoje, ao escrever minhas memórias sobre o tempo que partilhei com outros colegas o espaço de trocas da Escola “Aurélio”, faço uma constatação, óbvia, mas necessária: a educação é um processo contínuo e não pode ser isolado, é como a ciranda de dominós, uma peça atinge a outra, que atinge a outra que atinge a outra, até atingir o objeto final. Eu não teria vivido essa experiência significativa só com meus ideais, não tivesse encontrado um espaço propício e um grupo de colegas, com os quais pudesse sentir a liberdade de exercer meu ideal de educadora, conservando minha alteridade, num coletivo que me incluiu e não me inibiu.

Fora do espaço da Escola “Aurélio”, continuo acreditando que a educação só é possível na liberdade. Qualquer ambiente educacional tem que propiciar as condições que garantam a tomada de decisão por parte do indivíduo, pois só na livre opção pode ocorrer a responsabilidade e o compromisso. Educar na liberdade propicia situações imprevistas que desconcertam tanto os educadores como os próprios educandos. E educar na liberdade supõe uma mudança de atitude que implica um novo relacionamento entre educadores e educandos. Se a liberdade é uma forma natural e intrínseca da atividade humana, a confiança mútua entre educadores e educandos é condição para o êxito do processo educativo. Por essa razão pude ser o que acredito e o que prego.

E posso afirmar com toda a segurança, que o que ora escrevo não é um mero discurso, mas a confirmação do que fizeram em mim os anos de convivência com alunos, colegas e gestores dessa escola.


Professora Aya Ribeiro

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