segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Português de Trás-os-Montes

Dia difícil aquele! Já no pequeno almoço espatifei a xávena como berlinde em mão esperta. Não pude tomar a apreciada bica. Sem encontrar os chamiços para arranjar outra bebida quente, procurei os tira-cápsulas na esperança de apreciar ainda em casa uma água fresca, ou uma água lisa.

Qual nada! Nem mesmo pegamasso eu tinha em casa para arremendar a peça. Deixa estar, arrazoei, tão logo chegue a mulher-a-dias, ela me fará um sandes e providenciará a retocagem, ainda que seja com seu verniz para unhas. Esperei em vão! Deve ter perdido o auto-carro. Fiquei de olho nas paragens. Seria o caso de altercar, mas, ajuizei. Deixe estar que em outra estação farei o caso.

Chamei um puto, dei-lhe uns escudos e mandei que fosse de comboio para despachar-se a um casal mais próximo para que me trouxesse ao menos um dióspiro. E o miúdo que não retornava à botoeira! O remédio era compor-me com o fato, ou calhar com uma calça ganga e uma camisola interior, armar-me com um chapéu-de-chuva, um chuço que comprei em uma rebaixa e rumar a uma casa de pasto, ou a um chafarica, pedir ao empregado de mesa a ementa, antes de rumar ao trabalho, pois não tenho cheta pra uma charcutaria.

Mais problema: ao sair tropecei na sapa e me esparramei na alcatifa, caiu longe meu capachinho. Apareceu minha gadelha. Tive que andar de gatas. Chiça! Fiquei taralhoco. Antes tivesse usado um fato de banho. Até meu boxer ficou aos molhos. Nem meu telemóvel estava em funcionamento. Oh dia! Na despensa tão somente encontrei piri-piri. Na algibeira apenas uma pastilha elástica e um rebuçado que levaria ao catraio da hospedeira, minha catita vizinha. Aquele chavalo que arremeçou meu champô na sanita!

Fiquei sem ação. Zonzo, vislumbrei na osga um ameaçador jacaré. Oh céus! A essa altura até os melgas pareciam por demais ameaçadores. Não tive escolha: abri o frigorífico, tomei um gelado de frutas e devorei o resto de leite que estava no biberão do miúdo caçula. Fraco, todo molhado, pedi ao almeida que organizava a calçada que me ajudasse a alcançar um auscultador de uma cabine telefónica com o qual pudesse falar à borla. Deixaria recado no atendedor automático de meu empregador.

Não foi possível! A bicha da estação de serviço estava grande e eu não me lembrava do indicativo. Não quis ficar no seu rabo. Retornei à botoeira com a ajuda de um gasolineiro que vestia uma camisola de equipa encarnada (da minha claque), pois a passadeira de peões da estrada alcatroada estava interditada.

A grua levou meu veículo, porque não paguei a portagem e ainda levei uma coima. Mas isso é cagativo. Não fiz conta: afinal era um todo-o-terreno com imenso conta-quilómetros, sem matrícula. Perdi minha carta de condução e não adiantava carpir. Voltaria a andar de carruagem. Quem mandou ser casmurro! Tulho! Calhau! Naquele dia resolvi me reformar, ficar em casa me distraindo com banda desenhada, ou jogo-do-galo. Até assistir o direito de antena seria meu banheiro, antes que eu viesse a parar no morgue.

Compreenderam? Pois as palavras em itálico pertencem ao português. De Portugal, claro! A “tradução” será apresentada na próxima edição.


RIBEIRO, Ormezinda Maria. Minha Pátria é minha língua III: Português de Trás-os- Montes. In: Jornal Cidade Livre. Uberaba. Ano III, nº 1167, 22-09-2006, p. 02.

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